quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
UM CASO DE FUNERÁRIA
Estávamos o Messias e eu bebericando uma bramita, lentamente, intercalada com algumas beiçadas no conteúdo de um copo de cana, na Flutuante do seu Manoel, parada sobre as águas do imenso rio Tocantins, em Miracema, num bucólico entardecer de dezembro, quando a figura chegou: tranqüilo e maneiroso como um bom mineiro, sentou-se à nossa mesa e lá ficamos jogando conversa fora até a noitinha.
Contou-nos como verdadeiras e autênticas algumas interessantes passagens de sua desventurada vida, repleta de altos e baixos, segundo ele.
Disse ser filho de Minas Gerais, de uma região situada na divisa com o Espírito Santo, onde a injustiça, a violência e a sonegação imperaram durante décadas, em conseqüência da disputa entre os dois estados por aquela terra, o que o tornou lugar sem dono por muito tempo. As disputas eleitorais eram decididas através da intimidação, muitas vezes sendo o resultado de uma eleição municipal resolvido à bala e as famílias importantes se enfrentavam com a fúria de vândalos, na disputa pelo poder.
Assim, na narração do nosso colega de bebericagem, na sua terra a antiga UDN era propriedade de uma família, cujos membros e asseclas eram popularmente cognominados Corta-Goela, enquanto que outro clã detinha o poder de mando do PSD e seus membros eram os famosos Pica-Pau.
Foi ali, naquele típico clima de cidade pequena que o nosso amigo vendeu um barzinho, recebendo em troca uma empresa funerária e ainda dois defuntos em potencial que havia na cidade: na verdade, dois cidadãos que se encontravam em estado de saúde tão ruim, que tudo indicava necessitarem dos serviços da empresa proximamente. Só que um era pobre e o outro rico. E defunto pobre não dá lucro.
Nosso amigo tinha ainda um sócio chamado Lázaro e fazia parte do patrimônio da empresa uma velha camioneta Studebaker. Ambos viviam quase sempre atrelados a uma boa garrafa de cachaça de engenho, fabricada lá mesmo e assim, a pobre viatura fúnebre percorria os buraquentos caminhos mais pulando e sacolejando do que propriamente deslizando sobre a terra.
“O primeiro defunto foi o pobre, que deu prejuízo pra nóis”, falou nosso amigo, que dizia chamar-se Fábio. “Quando nóis tava esperano a morte do rico prá quarqué hora, aparecero lá uns fíi-duma-égua duns adventista e levaro o danado pra Belo Horizonte e foi só o disgraçado chega lá e morrê. Lá mesmo foi enterrado”.
Continuando sua narrativa interessante, o Fábio contou-nos que “logo em seguida mataro de tiro um Pica-Pau numa vila do Espírito Santo e os Corta-Goela num pudia ir lá busca o corpo, porque sinão pudia morre mais gente. Aí os parente do morto viéro contratá nóis pra ir faz lá fazê o serviço e então nóis aproveitemo a oportunidade prá tirá o atraso, e nóis rancô o coro deles. Pagaro a metade adiantado e nóis saimo prá viage”.
“Cheguemo lá no Espírito Santo já de tardinha, pernoitemo na pensão da Dona Filó e no outro dia bem cedo pusemo o defunto na carroceria da Studebaker e viagemo de vorta. Mas logo na saída tomemo umas prá animá e prá suportá a catinga do difunto infiliz, que já tava passano da hora de interrá”.
“Fumo tumano umas e otras pelo caminho e o Lázaro tava apertano o pé pra chegá logo e tonto como tava, nóis tivemo foi muita sorte de não tombá a camioneta e nóis se daná todinho”.
“Na entrada da nossa cidade tinha uma ponte de tábua das mais mar feita do mundo, fartano tábua no meio e com cada buracão na entrada e na saída das viga. Embalado como tava, o Lázaro entrou com tudo na dita ponte e a camioneta pulou mais que cabrita doida, mas saímo do outro lado sem pobrema. Quando cheguemo na cidade, os parente do Pica-Pau morto viero ansiado perguntá cadê o falecido. Falei que tava na carroceria, mas quando olhemo num tinha ninguém e aí passemo o maió apuro da nossa vida, porque os home brabo já queria parti pra cima de nóis”.
Terminando a narrativa e o suspense, nosso colega disse que naquele instante, para salvar os dois apavorados sócios da funerária, “apareceu um rapáiz da cidade e falô que acabô de vê um corpo de gente ingastaiado nas pedra dentro do córgo. Corremo prá lá e discubrimo o que aconteceu. Com as bacada na ponte, o difunto pulô fora, caiu dentro do córgo e pra cumpricá, bateu a cabeça numa pedra, separano o corpo da cabeça”.
Meu amigo não teve coragem de cobrar a outra metade do serviço, mesmo porque ele e o sócio Lázaro já estavam jurados pelos parentes do morto, por causa do serviço mal feito e tiveram que vender a funerária por qualquer preço, antes que terminasse o enterro do homem e se escafederam do lugar para nunca mais voltarem, “inté hoje”, arrematou o Fábio.
Hélio Nascente
Publicado no jornal A Voz do Povo – Miracema do Tocantins-TO, janeiro/1991.
Está no site: http://www.alexania.tv/
Fonte da ilustração: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEho3VlXuZ2I76eexYB8nLQgZ7E5P99EM_3piCCO7byQOka8pgLs9ZyZKMaEKLcJ3B09rNBwSJYE_9Zz7Ax5ws26RGTzhl3oCe0iZmLCR5ypYzW0isvQOylMH0ww0-Id29qPkWfTPXW1_IF7/s1600/caixao.jpg
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