Por Emídio Beúla
Fotos de Joel Chiziane
Foi no dia 5 de Maio de 1980 que um jovem de 22 anos decidiu abandonar a família (pais), a namorada, os amigos e o cargo de chefe da secção de desenhos na manutenção portuária nos CFM para se juntar a um movimento de guerrilha ainda em gestação e que se pretendia lutar ideologicamente contra a orientação marxista-leninista que a Frelimo havia assumido nos anos imediatamente após a independência. Estamos a falar da entrada de Raul Domingos no movimento que mais tarde viria a se transformar num partido político (na oposição), a Renamo.
Hoje com 52 anos (faz 53 a 14 de Outubro), o principal negociador da paz por parte da Renamo e hoje presidente do PDD (um partido na oposição que ainda não conseguiu a sua descolagem politica) terminou a sua juventude nas matas. Foi lá onde conheceu a sua esposa e fez três, dos cinco filhos.
O enlace entre Raul Domingos e a antiga guerrilha deu-se na localidade de Doeroi, posto administrativo de Amatongas, distrito de Gôndola, quando uma coluna liderada por Afonso Dhlakama interceptou um comboio de carga, onde ele e um colega e amigo viajavam. “Foi com muita sorte, o comboio parou, sem ser atacado, no local onde a coluna estava a passar”, lembra o interlocutor em declarações ao SAVANA esta quarta-feira em Maputo. Os homens armados dirigidos por Dhlakama aproximaram-se ao comboio e começaram a dialogar com os poucos ocupantes.
“Fomos convidados a fazer parte da guerrilha e eu aceitei”, conta com muita naturalidade. “Na altura ainda não tinha começado a propaganda política governamental de que o movimento era um grupo de bandidos armados, tanto mais que o movimento existia a sensivelmente três anos”, contou, quando perguntámos se foi fácil tomar a decisão.
Os pais souberam da decisão do filho de integrar o movimento de guerrilha através de uma carta que ele escreveu e entregou-a ao amigo com quem viajava. “Ele mostrou-se relutante porque tinha mulher e filhos, tinha uma mãe viúva que dependia dele”, conta Raul Domingos, lembrando que o chefe da coluna (Dhlakama) decidiu libertar o seu amigo. “Fiz a carta e pedi-lhe para levá-la aos meus pais. Quando me encontrei com os meus pais depois de terminar a guerra, exibiram a carta”, explica, lamentando que durante a guerra não pode visitar os pais. Luís Lino Guilherme, o amigo que serviu de correio, viria a ser o primeiro representante da Renamo na cidade da Beira, logo após o término da guerra.
Razões
Até 1980, o jovem funcionário dos CFM já tinha ouvido falar de um movimento que “contra o marxismo-leninismo”. E as razões para ele apagar todos os sonhos e juntar-se a esse movimento diz que eram bastantes. Uma delas, segundo conta, é a visão que tinha sobre a “grande” restrição das liberdades. Nos CFM, ele havia beneficiado de um curso que o dava direito a ascender imediatamente a uma outra categoria. “Não ascendi àquela categoria, porque na altura havia um decreto que dizia que ninguém podia ser promovido”, explica. Outro decreto que aos seus olhos coarctava as liberdades dos cidadãos, proibia os funcionários públicos de abandonarem as suas vagas estatais para irem trabalhar em empresas privadas sob pena de serem acusados de sabotagem.
Por não ter sido promovido, Raul Domingos tinha a possibilidade de ir trabalhar para uma empresa privada que oferecia vagas para a sua formação e pagava melhor, a Açucareira de Moçambique. Mas não podia abandonar os CFM sob pena de ser acusado de sabotagem.
“Esta restrição de liberdades criou em mim um trauma e comecei desde cedo a perceber que a independência não tinha trazido a liberdade”, explica os efeitos que as proibições da época criaram em si. E mais: “Percebi que havia um motivo para lutar”.
Momentos difíceis
Passam 18 anos após a assinatura do Acordo de Paz e o tempo apagando alguns episódios de guerra na memória de Raul Domingos. Mas alguns ainda resistem ao tempo, como a primeira experiência de um ataque que teve lugar em 1980 na base de Citatonga, sul de Manica.
Diferentemente dos outros jovens que uma vez capturados eram distribuídos por unidades militares dispersas, ele foi integrado na unidade central onde estava Afonso Dhlakama, o guia do movimento.
“A coluna movimentava-se de Gorongosa para o sul da província de Manica e fomos nos fixar em Citatonga. Era uma base muito conhecida e era dirigida pelo próprio Dhlakama. Mas mais tarde viria a sofrer uma ofensiva, naquilo que constitui para mim a primeira experiência militar”.
Outra experiência que Raul Domingos guarda na memória é o ataque que sofreu em Mahele, um dos cinco postos administrativos de Magude, província de Maputo. Na altura, 1984, ele era, na hierarquia da guerrilha, chefe do Estado Maior da zona sul onde dirigia entre cinco a sete mil efectivos. O ataque ocorreu dois meses depois do Acordo de Nkomati.
“Foi a 2 de Junho, o terreno não era favorável para a guerrilha. Era muito fácil sermos atacados com viaturas de combate e tanques”, descreve. E o ataque das forças governamentais viria a ser feito com recurso a tanques e carros blindados.
“Tivemos que fugir dispersos”, lembra, deixando muita informação, mapas de localização das bases e de esconderijos de material. “Mais tarde descobrimos que eles não tinham levado o saco que tinha documentos de informação militar”.
Não havia mobilização
Até Outubro de 1992, a Renamo tinha aproximadamente 25 mil efectivos. Como era feita a mobilização? Não havia, responde. “A resistência era contra a agressão à liberdade, aos valores culturais e religiosos. As pessoas sentiam a guerra como sua, não precisavam de mobilização, não precisavam de comissários políticos”, argumenta, reiterando que “cada um juntava-se à guerrilha por motivos próprios.
Outro aspecto que facilitava os movimentos da guerrilha era o acesso a informação das forças governamentais. Segundo relata, os serviços de informação eram tão sofisticados que captavam quase todas as informações militares, incluídos os planos militares, a movimentação, a logística, a ordem de batalha de inimigo - saber que tipo de armamento existe numa unidade (base), quantos homens existem, qual é a sua rotina e a sua logística.
Abastecimento
Sobre o abastecimento em material bélico, Raul Domingos a guerrilha era fornecida pelo regime do Apartheid da África do Sul e pelo regime do Zimbabuè. Mas depois dos Acordos de Nkomati, em Março de 1984, esses apoios cessaram.
“Passamos a receber material bélico fornecido por oficiais e altas patentes das forças governamentais”, acusa, sem fornecer muitos detalhes sobre isso. “Agora não posso indicar os nomes dessas pessoas, mas do lado do movimento quem colaborava com elas era Manuel Pereira e o senhor Carrelo”, explica. As duas figuras, hoje membros da Renamo, faziam parte daquilo a que Domingos designa de guerrilha urbana e de clandestinidade.
Sobre a comida, o interlocutor diz que a população é que abastecia a guerrilha.
Não vendemos a paz.
Alguns académicos têm demonstrado nas suas análises que tanto o Governo da Frelimo como a Renamo aceitaram a paz a troco de recursos de poder (materiais e simbólicos) oferecidos pela comunidade internacional. Assim, dizem, os Acordos de Roma permitiram à Frelimo capturar o Estado e a Renamo ter acesso aos fundos da indústria de desenvolvimento. Sem essas garantias nenhuma parte estava em condições de aceitar a paz que era promovida pela comunidade internacional. Raul Domingos não concorda dessa visão e argumenta: “em nenhum momento exigimos dinheiro para aceitar o que quer que fosse. Os nossos princípios não eram vendidos, por isso conseguimos ter um dos melhores acordos de paz até aqui se conseguiu em África”.
Para ele, a guerra não teria durado 16 anos se houvesse uma abertura para o diálogo por parte do Governo da Frelimo.
A falta de diálogo e de tolerância política, diz ele, é que criou a situação de guerra. “Esse conjunto de mentiras faz um colorado de informações que pretendem desvirtuar o verdadeiro sentido da guerra civil que aconteceu no país”, desabafa.
Mas admite que as despesas das suas deslocações a Roma eram suportadas pela Itália, através da Comunidade do Sant´Egídio.
Negociações
Depois de ter sido nomeado Chefe do Estado-Maior da zona sul em 1984, Raul Domingos foi transferido em 1987 para zona centro do país. Aqui ele desempenha as funções de chefe do Estado Maior - General a nível nacional. Dois anos mais tarde, é chamado para o gabinete do presidente do movimento para cumprir a missão de enviado especial para Quénia.
“Fui a Quénia para atender a um convite que tinha sido feito ao presidente da Renamo pelo presidente da Quénia. Foi lá onde encontrámo-nos pela primeira vez com o grupo dos clérigos moçambicanos, o Dom Alexandre, o Dom Jaime, o dom Dinis Singulane e o falecido pastor Ozias Mugache”. Depois da viagem para Quénia, Raul Domingos é desvinculado do Estado Maior - General para assumir o cargo de chefe das relações externas. “A partir dai comecei a acompanhar todo o processo de aproximação entre a Frelimo a Renamo”, conta, indicando que mais tarde viria a ser designado para chefiar a delegação da Renamo para o encontro directo com a delegação da Frelimo, que teve lugar em Junho de 1990 em Roma.
As negociações foram difíceis, porque era uma questão tolerância para ouvir opiniões contrárias, diz. “Enquanto uns nos viam como bandidos armados, nós tínhamos que fazer um esforço para que essa atitude mudasse e passassem a considerar-nos parceiros”.
Houve impasses nas negociações, “não chegávamos ao entendimento, cada parte voltava à sua posição”.
Sobre concessões, o interlocutor diz que foram muitas, e dá um exemplo: “Na questão da paridade nas forças de defesa e segurança, o nosso desejo era ter paridade nas Forças Armadas, na Polícia e no SISE. Mas acabámos cedendo na Polícia e no SISE, acabando por ficar com a paridade nas Forças Armadas onde os efectivos tinham de ser 50% de cada lado, os comandos também 50% de cada lado”.
“Uma negociação é dar e receber, não é uma imposição”, lembra, dizendo, porém, que a única imposição que o Renamo fez foi a instauração do Estado de Direito e de uma democracia multipartidária. “Chamo a isto de imposição porque existe um grupo ortodoxo na Frelimo que ainda acredita que o marxismo-leninismo seria o melhor modelo de governação”, justifica.
Dentro da Renamo também não era fácil convencer os membros sobre a necessidade de fazer algumas concessões. “É por isso que estou careca”, diz, entre risos. “Não foi fácil, tinha de passar a mão muitas vezes pela cabeça, tinha de engolir sapos, aceitar ouvir coisas que não queria ouvir”, recorda, dizendo o desafio era de encontrar termos apropriados para convencer internamente sobre as concessões a fazer e tecer argumentos para convencer a outra parte.
SAVANA – 01.10.2010