Valdemes Ribeiro de Menezes*
O Zé Rosinha está lá, morto, no caixão de pobre, em cima das cadeiras, no meio do bar. Afinal, nos últimos anos, o bar do Paulo Pirassununga é o lugar em que o morto mais frequentou, principalmente à noite, ou desde o cair da tarde.
O “comercinho” do Pirassununga, nessa casa antiga bem pintada, de piso de cimento, não passa de um boteco meio grande, onde elite não entra.
Apesar da cidade ser pequena, ninguém ficou sabendo dessa morte. Não houve anúncio nas ruas e nem nada. Também, convidar quem? Ele não tinha casa nem família, era alcoólatra, vivia de asilo em asilo, ou bêbado, de calçada em calçada.
De vez em quando alguém entra para pedir dose de pinga e se assusta:
Que que isso?!
O dono do bar explica:
É o Zé Rosinha.
A pessoa não acredita:
Mas aqui?... Nunca vi... Em boteco não.
Curioso, o sujeito chega a soltar um “coitado!”, observando que a roupa do morto está meio amarrotada, no entanto, veste camisa nova xadrez, calça branca de brim (sem cinto) e botina nova de solado de pneu.
Fregueses vão aparecendo, olhando e poucos ficando. Outros não gostam: vão embora. Ô, noite comprida...
Meio “braseado”, porque já tomara umas e outras, mas ainda com a fala no lugar, chega de chapéu na cabeça um peão de boiadeiro, o Fura-Eura. Ele passa pelo mesmo susto:
Que diabo é isso?!
Um tanto arredio, Fura-Fura tira o chapéu e fica sabendo que o morto é o Zé Rosinha, seu inimigo. O Pirassununga puxa conversa:
Conhece?
Conheci. Agente não se gostava.
Seu inimigo?
Mais ou menos... Agente não gostava um do outro. Uns quatro ou cinco pinguços começam a escutar. Alguém arrisca a pergunta:
Porquê?
O peão fica meio encabulado:
Ã?
A pessoa insiste:
O que é que o Zé Rosinha te fez?
Fura-Fura se senta, pede pinga e batatinha frita, servidas na hora. Pensativo, ele encosta a batata e traga a dose de pinga. Às vezes fechando os olhos, empinando a cabeça e apertando a testa com uma das mãos, ele vai buscando o seu passado:
—Aquela mulher era um exagero de beleza... Morena de corpo perfeito. Não tinha quem não desejasse aquilo. Cada vez que ela aparecia, o Zé do inferno vinha junto, fazendo gracinha. Me desculpa... Pô, ela era minha! Cheguei a andar de mão dada com ela. Até o Zé aparecer. Antes, ela gostava de me ver laçar, derrubar bezerro. Olhava, ria, me provocava. Mas, com a vinda do Zé, da minha idade na época, 25 anos, a coisa mudou. O merda fazia bonito, também tinha força no pé, segurava o laço c derrubava a rês. Só que ele gostava de fazer graça. Por causa disso a minha vida mudou. Foi quando aquela moça, a nossa paixão (é, ele também ficou doido por ela), foi quando.., foi quando ela levou uma peneira cheia de pão de queijo pra gente. O Zé aprontou o maior escândalo, igual menino; ele pulou a porteira do curral e passou a cantar que nem besta, lembro direitinho:
Fui descendo rua abaixo encontrei com uma princesa carregando uma peneira cheinha de pão de queijo!
A partir daquele dia, todo mundo passou a chamar o Zé de “Zé Rosinha”, porque a nossa princesa se chamava Rosa e a gente chamava ela de Rosinha. Ai, meu Deus, um trem lindo!... Cheguei a comprar um revólver, pra acabar com o apelido do Zé. Mas não tive coragem. Percebi que era besteira. Ele podia continuar vivendo, fazendo palhaçada pras moças. E melhor longe de mim. Só que não adiantou nada. A Rosinha não foi pro nosso bico. Apareceu outro sujeito, um plantador de batata e tocador de sanfona, que fugiu com a princesa. Aí... aí eu mudei de fazenda. O Zé Rosinha, fiquei sabendo, pôs na cabeça que ia ficar rico. Queria ficar rico plantando batata. Sabe pra quê? Pra comprar uma sanfona. Dizem que era o sonho dele. Já faz... já faz uns doze anos. Só que ele veio pra cidade e virou isso aí: nem batata, nem sanfona.
Os galos cantam. É madrugada. Poucos homens no bar. Fura-Fura encota o tira-gosto:
— Paulo, joga fora essa batata e me traz outra pinga. Entra uma mulher, que se dirige ao Fura-Fura:
Benzão, até agora na ma?... Nossa Senhora, que que houve?
O marido disfarça o mal-estar:
Morreu um amigo meu... Vai dormir. Eu vou esperar o enterro. E vê se não fica andando fora de hora na rua.
A mulher se afasta depressa, para não dar o que falar. O marido não gosta que ela frequente botecos.
Dia claro, Paulo Pirassununga fecha o caixa e recolhe o dinheiro no bolso. Olha para o rosto inchado e as unhas sujas do morto. Mesmo sem flores, tem a impressão de que ele sorri assim de camisa nova xadrez, calça branca de brim (sem cinto) e botina nova de solado de pneu.
Saindo. Paulo pede ao pessoal para tomar conta do seu bar. Alguém quer saber se ele vai tirar a guia de sepultamento.
Pirassununga suspira fundo e responde:
— Vou comprar uma sanfona pra colocar no caixão do Zé Rosinha.
*Valdemes Ribeiro de Menezes é advogado e escritor
http://www.dm.com.br/#!/267481
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