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quarta-feira, 6 de abril de 2011

VILA MATIAS

Giovani Ribeiro Alves*

Parte da minha infância foi vivida entre Taguatinga Sul, no Distrito Federal e outra parte no Conjunto Riviera, em Goiânia. Em Taguatinga Sul, moramos a maior parte do tempo na Vila Matias, em um barracão de tábua de apenas dois cômodos, em um lote com mais nove barracões, um banheiro coletivo para todas as famílias, uma cisterna com uma carretilha para tirarmos água. Dentro do barracão, um fogão Dako, de quatro bocas, um botijão de gás, uma cama de casal para os meus pais, e uma beliche onde dormíamos eu e minha irmã, Meiry Lúcia, além de uma rude mesa com quatro cadeiras e um antigo armário de madeira.

Em baixo da cama da minha mãe, tinha um penico de plástico, pois em noites de chuva e de frio, o acesso ao banheiro era muito difícil, então urinávamos no penico e pela manhã derramávamos a urina no banheiro que possuía apenas um vaso sanitário e um chuveiro frio para atender dezenas de moradores daquele lote enorme, com a casa de alvenaria na frente do lote, que pertencia aos proprietários, Seu Ivo e Dona Iracema. A rua era larga, sem asfalto, nos dias chuvosos os sapos cantarolavam, fazendo ecoar um som, como que chamando alguém: “Bruno” , “Bruno”, “Bruno”, isso facilitava a diversão de uma infância sem brinquedos mas com muitas brincadeiras, como as “fincas” que eram jogadas em tempos de chuva, pois o chão molhado facilitava a brincadeira.

A inesquecível Nair, determinada, solteirona, que cuidava da mãe, dona Geralda, uma senhora já bem idosa, uma vez fui com dona Geralda na feira da pracinha da Vila Matias, que ficava nas imediações do antigo Cine Rex, e lá aprontei uma grande arte com a ”pobre velha”, ela caiu e na sua queda os seus óculos foram lançados para um lado e os seus chinelos para o outro, quando uma senhora a levantou, eu disse a ela que uma ponta de cigarro que estava no chão, também era de dona Geralda, a mulher então quando ia colocando o cigarro de volta na boca da dona Geralda, ela bradou: “Eu não fumo, isso é caçoagem do Giovani.” Dona Geralda era uma mineira franca, branca, de baixa estatura, fortinha e que usava um óculos de massa, cor preta, ela morava em dois cômodos na fundo da casa da sua filha Nair, quando eu ia até o seu barraco me chamava a atenção um relógio de parede no formato de uma chaleira e foi em seu singelo barracão onde pela primeira vez eu vi um “Bom Ar”, que dona Geralda aspergia constantemente nos seus dois cômodos para perfumar o ambiente.

Nair era uma serviçal da rua, aplicava injeções, gostava de repartir o pão, e cuidava dos gatos e cachorros abandonados que apareciam em sua porta, funcionava em sua casa uma espécie de “vendinha” para a meninada, comprávamos fiado e no final do mês nossos pais pagavam as contas. De tantas coisas que lá se vendiam, ainda me lembro dos suspiros, das marias-moles, das pipocas de doce, dos docinhos de banana e pé de moleque, picolés, pirulitos espirais, rosquinha de leite, que era fabricação da própria Nair. Para nós, meninos fregueses da Nair, a sua casa funcionava como uma espécie de reduto dos meninos que moravam nas imediações da QSD 30, onde enchíamos a barriga de guloseimas e encontrávamos a meninada toda da rua e juntos adoravámos brincar com os cachorros da Nair, Fofinho e Lilico, ambos piquinês.

Esses dias voltei na QSD 30, na Vila Matias, em Taguatinga Sul. (Os moradores que hoje moram em Taguatinga Sul , poucos sabem que Taguatinga Sul, também era conhecida por Vila Matias, que recebeu esse nome em homenagem ao Sr. Matias, um antigo morador e pioneiro de Taguatinga Sul) o cenário de hoje não é mais o mesmo de trinta e dois anos atrás, tudo mudou completamente, ruas asfaltadas, casas com grades e calçadas, os meninos desapareceram, a rua parece que morreu no esquecimento, parte do cerrado que enchia os nossos olhos cedeu lugar para a linha do metrô, apenas as torres de alta tensão ainda continuam testemunhando a veracidade da minha narrativa infantil. Dona Geralda, mãe de Nair, faleceu em 1993. A Nair continua a mesma, alegre, sorridente, de cabelos brancos e arrastando aquele sotaque paulista, com oitenta anos de idade mas com um espírito juvenil, pronunciando como de costume um português correto. Recebeu-nos com alegria e juntos voltamos ao tempo em que a rua era cheia de meninos, cachorros, buracos, lamas, sapos e capins. Os meninos da minha época cresceram, uns casaram, outros descasaram, alguns morreram, alguns permancem solteiros e uma grande maioria deles não mora mais por ali, alguns se perderam e outros se acharam na vida.

A amável Nair ofereceu-nos um delicioso café com pão e manteiga, o chão de vermelhão da sua casa ainda é o mesmo do tempo da “vendinha”, a velha geladeira “general Eletric” ainda ostenta o glamour dos anos oitenta, lá dentro ainda pude ver as vasilhas de sobremesa com gelatinas de abacaxi, como nos velhos tempos de criança em que ganhávamos de brinde a gostosa gelatina. Disse a ela que a rua não era mais a mesma e que tudo estava diferente, ela sorriu e me disse: “Giovani, tudo nessa vida passa, só não passa uma grande amizade como a nossa, que continua a mesma depois de mais de trinta anos .

(Giovani Ribeiro Alves, filósofo, professor de Filosofia e de Sociologia na rede pública estadual em Goiânia, escritor, membro da Associação Goiana de Imprensa e articulista do Diário da Manhã. giovaniribeiro42@gmail.com)

Fonte: Jornal Diário da Manhã

http://www.dm.com.br/#!/273170

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Nasci e me criei na Vila Matias.Como zoavam comigo QSD dos outros casa nossa (QSD 18 casa 09). Viajei no seu belíssimo texto, Giovani. Amei!!!

Unknown disse...

Também viajei nessa história,bem parecida com a minha e de muitos.Não moro maIs lá ,mas de vez enquando passo pra matar saudades.Morei na 14,55,53 e me cresci brincando da pracinha do cinerex.Adorei seu texto