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sexta-feira, 30 de abril de 2010

CANTO DE EMBALAR PLANTIO - Placidina Siqueira


Placidina e João

Há um ano atrás sepultamos João,
João Lemes de Siqueira, um sonhador,
mas não seu sonho de Bom Semeador...

... assim então me ponho rente ao plantador,
parece inerte, mas vira uma semente,
ao mesmo tempo, terra fértil...

E porque preciso:
transplantou jardins e implantou sorrisos
sempre ao lado de Jesus,
o arquiteto do paraíso.


Paraúna, outono de 2009 e 2010.
Placidina, Júlia Izabela, Orcelo Vítor,
Fernanda e Vítor Rezende de Siqueira.

João Lemes de Siqueira
*Paraúna, 11 de janeiro de 1937
+Goiânia, 01 de maio de 2009

terça-feira, 20 de abril de 2010

HIPERTENSÃO ARTERIAL -


Dr. Telmo Magalhães Machado*


Hoje a hipertensão arterial é vista pelos cardiologistas, mais do ponto de vista preventivo do que curativo, pois muitas das vezes que a pessoa constata a pressão arterial, ela já está com vários riscos cardiovasculares, de forma que devemos olhar para o paciente hipertenso, ou melhor, futuro hipertenso, mostrando as diversas condutas que a pessoa deve tomar para que tenha uma vida mais longa e principalmente com boa qualidade. Então, desde a menor idade já nos preocupamos com a alimentação, principalmente com o excesso de carbohidratos (açúcares), de modo geral, sedentarismo, vícios maléficos como drogas, cigarros, e, dentre este item anterior, o qual leva a buscar estes malefícios é a orientação psicológica, científica e espiritual. Desde a infância devemos mostrar às pessoas os ensinamentos de Deus que devemos cuidar, zelar por este corpo que Ele nos deu para termos e propiciar aos nossos familiares e amigos uma qualidade de vida boa, pois quando uma pessoa adoece – e geralmente ela tem amigos e familiares e todos padecem –, trazendo a infelicidade, gerada pelo egoísmo, pela falta de Deus no coração, que, como dizia Frederico Ozanam, a felicidade só é completa para quem tem Deus no coração, quando é compartilhada por todos, que não primam pelo egoísmo, e tenham sempre Deus no coração.

Enfatizo a parte espiritual, pois depois do cigarro é o stress que mais mata as pessoas e o amplo espectro que traduz a paz espiritual é o grande passo para que a pessoa possa lidar com todos os obstáculos que a vida nos apresenta, de modo que com este pensamento facilita a tomada de medidas preventivas e curativas, talvez para impedir as alterações que levam ao processo de arteriosclerose, que leva à hipertensão arterial e vice-versa, atingindo o agravamento maior que é o infarto cerebral, cardíaco, renal ou de membros inferiores.

A hipertensão arterial ‘verificada quando o profissional da saúde afere a pressão arterial, que, normal num adulto, alcança um valor máximo de 140 mmHg (milímetros de mercúrio) e mínimo de 90 mmHg. Valores maiores indicam hipertensão (pressão alta); assim devemos manter a pressão abaixo deste nível, pois a este grau o processo de obstrução arterial acelera e de acordo com a genética da pessoa a artéria da cabeça, coração, vai obstruindo primeiro. E hoje a Medicina tem remédios que, além de baixar a pressão, melhoram também os níveis de gordura no sangue, e se o médico contar com a inteligência do paciente, e é o que estamos observando nas pessoas da melhor idade, usufruindo de uma boa qualidade de vida.

*O Dr. Telmo Magalhães Machado é médico cardiologista e ergometrista e membro da Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) desde 1999.
Artigo transcrito do jornal 23 de Abril, órgão do Conselho Central de Campinas da SSVP – Edição n. 5.

Ilustração: http://paulodaltrozo.files.wordpress.com/2009/09/hipertensao.jpg

domingo, 18 de abril de 2010

O PHS EM GOIÁS: CRESCENDO SEMPRE


Eduardo na foto, em visita ao PHS de Alexânia-GO

O PHS de Goiás tem crescido muito, o que nos alegra e confirma que estamos no caminho certo. Nosso partido sairá muito fortalecido deste processo eleitoral, a candidatura do companheiro Oscar Silva trará muita visibilidade, o que ajudará nossos candidatos a deputado estadual e federal.

FICHA LIMPA

Não é à toa que as resistências ao projeto que obriga os candidatos a terem ficha limpa são grandes na Câmara. Nada menos que 152 parlamentares são investigados pelo Supremo Tribunal Federal, segundo levantamento feito pelo site Congresso em Foco, em setembro de 2009. Ou seja, um quarto dos deputados e senadores tem pendências com a Justiça. O PMDB e o DEM lideram a relação de partidos com maior número de parlamentares encrencados no Supremo.
No PMDB, 32 deputados e senadores estão na mira da Justiça. No DEM, são 22 parlamentares e, no PSDB, 17 respondem a acusações no Supremo.
Dos grandes partidos, o PT é o que tem menor número de parlamentares com problemas na Justiça: 14 deputados do total de 79. Só quatro partidos (PC do B, PHS, PTC e PT do B) com representação no Congresso não têm nenhum parlamentar com ação ou inquérito no STF.

Pelo levantamento do Congresso em Foco, as acusações referem-se a 20 diferentes tipos de crime. Os delitos mais frequentes dizem respeito a crimes de responsabilidade, contra a Lei de Licitações, peculato, formação de quadrilha, homicídio, estelionato e contra o meio ambiente. Há ainda denúncias de menor gravidade, como os crimes de opinião - calúnia, injúria e difamação.
A maioria dos parlamentares que respondem a ações no Supremo será candidata este ano. Um dos casos mais notórios é o do deputado Jader Barbalho (PMDB-PA), alvo de nove ações e inquéritos no Supremo, que incluem emprego irregular de verbas públicas, peculato, estelionato e formação de quadrilha. Jader ainda não decidiu se disputará o governo do Pará ou o Senado, como defende o PT”.

INADIMPLÊNCIA

Reiteramos que para o bom andamento do partido, é fundamental que a contribuição mensal esteja em dia, vale lembrar que atraso de 3 meses consecutivos significa que a direção local não tem mais interesse em dar prosseguimento ao relacionamento com o partido.

2012

Um bom projeto eleitoral se faz com antecedencia, a direção estadual orienta aos companheiros que já iniciem esforços no sentido de arregimentar companheiros para o próximo pleito municipal.

PROGRAMA DE RÁDIO DE TV

Recebemos muitos elogios de toda a mídia nacional pela qualidade do nosso programa de rádio e tv exibido em 01/04, para quem nõa assistiu, basta clicar aqui http://www.youtube.com/watch?v=YzovNs0Uqys

att

Eduardo Machado
Presidente PHS-GO

eduardo@edumachado.com.br

www.phs.org.br

www.phsgoias.blogspot.com

==> (62) 9994-3635

sábado, 17 de abril de 2010

PÉROLAS DO ENEM/2007


Biga, ou biagamia?

Prepare-se para ler o futuro deste país.

"O Brasil não teve mulheres presidentes mas várias primeiras-damas foram do sexo feminino".
(Ou seja: vários ex-presidentes casaram-se com travestis)

"O número de famigerados do MST almenta a cada ano seletivo".
(E a burrice não "diminói")

"Os anaufabetos nunca tiveram chance de voltar outra vez para a escola".
(Nem de ir)

"Vasilhas de luz refratória podem ser levadas ao forno de microondas sem queimar".
(Alguém poderia traduzir?!)

"O bem star dos abtantes da nossa cidade muito endepende do governo federal capixaba".
(Vende-se máquina de escrever faltando algumas letras.)

"Animais vegetarianos comem animais não-vegetarianos".
(Esse aí deve comer capim)

"Não cei se o presidente está melhorando as insdiferenças sociais ou promovendo o sarneamento dos pobres. Me pré-ocupa o avanço regresssivo da violência urbana".
(“Sarneamento” deve ser o conjunto de medidas adotadas por Sarney no Maranhão. Quer dizer, eu “axo”, mas não me “pré-ocupo” muito)

"Fidel Castro liderou a revolução industrial de 1917, que criou o comunismo na Russia".
(Não, besta, foi o avô dele)

O Convento da Penha foi construído no céculo 16 mas só no céculo 17 foi levado definitivamente para o alto do morro".
(Demorou o "céculo" inteiro pra fazer a mudança)

"A História se divide em 4: Antiga, Média, Momentânea e Futura, a mais estudada hoje".
(Esqueceu a História em Quadrinhos)

"Os índios sacrificavam os filhos que nasciam mortos matando todos assim que nasciam".
(Pena que a mãe dessa anta não fosse índia)

"Bigamia era uma espécie de carroça dos gladiadores, puchada por dois cavalos".
(Ou era uma "biga" macho que tinha duas "bigas" fêmeas, puxada por um burro?!)

"No começo Vila Velha era muito atrazada mas com o tempo foi se sifilizando".
(Deve ter sido no tempo em que lá chegaram as primeiras prostitutas)

"Os pagãos não gostavam quando Deus pregava suas dotrinas e tiveram a idéia de eliminá-lo da face do céu".
(Como será que eles pretendiam fazer isso?!)

"A capital da Argentina é Buenos Dias".
(De dia. À noite chama-se Buenas Noches)

"A prinssipal função da raiz é se enterrar no chão".
(E a "prinssipal" função do autor deveria ser a mesma. Vivo.)

"As aves tem na boca um dente chamado bico".
(Cruz credo)

"A Previdência Social assegura o direito a enfermidade coletiva".
(Hehe. Esse é espirituoso)

"Respiração anaeróbica é a respiração sem ar, que não deve passar de 3 minutos".
(Senão a anta morre)

Ateísmo é uma religião anônima praticada escondido. Na época de Nero, os romanos ateus reuniam-se para rezar nas catatumbas cristãs".
(E alguns ainda vivem nas "catatumbas")

"Os egipícios dezenvolveram a arte das múmias para os mortos poderem viver mais".
(Precisa "dezenvolver" o cérebro)

"O nervo ótico transmite idéias luminosas para o cérebro".
(Esse aí não deve ter o tal nervo, ou seu cérebro não seria tão obscuro)

"A Geografia Humana estuda o homem em que vivemos".
(I will survive)

"O nordeste é pouco aguado pela chuva das inundações frequentes".
(Verdade: de São Paulo até o Nordeste, falta construir aquadutos para levar as inundações)

"Os Estados Unidos tem mais de 100.000 Km de estradas de ferro asfaltadas".
(Juro que eu não li isso)

"As estrelas servem para esclarecer a noite e não existem estrelas de dia porque o calor do sol queimaria elas".
(Confesso: adorei. Desconfio que vai ser poeta)

"Republica do Minicana e Aiti são países da ilha América Central".
(Procura-se urgente um Atlas Geográfico que venha com um Aurélio junto)

"As autoridades estão preocupadas com a ploleferação da pornofonografia na Internet".
(Deve estar falando do CD dos Raimundos)

"A ciência progrediu tanto que inventou ciclones como a ovelha Dolly".
(A PF também: inventou a Operação Furacão, que colocou alguns juízes no olho do clone)

"O Papa veio instalar o Vaticano em Vitória mas a Marinha não deixou para construir a Capitania dos Portos no mesmo lugar".
(O Papa é pop. O pop não poupa ninguém)

"A devassa da Inconfidência Mineira foi Marília de Dirceu, a amante de Tiradentes".
(Plagiou o “Samba do Crioulo Doido”)

"Hormônios são células sexuais dos homens masculinos".
(Isso. E nos homens femininos, essas células chamam-se frescurormônios.)

"Os primeiros emegrantes no ES construiram suas casas de talba".
(Enquanto praticavam “Tiro ao Álvaro”)

"Onde nasce o sol é o nacente, onde desce é o decente".
(Indecente: o sol não nasceu pra todos)

"A terra é um dos planetas mais conhecidos e habitados no mundo. Os outros planetas menos demográficos são: Mercurio, Venus, Marte, Lua e outros 4 que eu sabia mas como esqueci agora e está na hora de entregar a prova, a senhora não vai esperar eu lembrar, vai? Mas tomara que não baixe minha nota por causa disso porque esquecer a memória em casa todo mundo esquece um dia, não esquece?".
(Quase chorei. Mas todo mundo deveria esquecer
a memória em casa, ao menos um dia: isso é lindo)

Fonte: http://verdesmares.globo.com/v3/canais/noticias.asp?codigo=192464&modulo=840

Ilustração: http://www.midisegni.it/storia/disegni/biga.gif

ÁCIDO FÓRMICO


Placidina Siqueria


Já vem essa formiga
Sapeca, sapecar minha língua:
Meu papel, meu lápis, todos viram
Formiga mal-pisada.

Ontem à noite toda na chávena da cidra,
O cheiro de formiga cabeçuda
Embalou meu cérebro, adocicou meu sono
Rumo ao colo de Morfeu, em doce calma ria,
Ou melhor, sorria.

Hoje no café da manhã
A formiga doceira
Azedou meu dia.

Foto: http://images03.olx.com.br/ui/2/28/68/34312068_1.jpg

VENTOS DE UMA NOVA TEMPESTADE

Prof. Reinaldo Pantaleão

Apenas não encontrou abrigo
na pensão do branco e buscou
no desabrigo do ponto de ônibus
e cama sem colchão e o
travesseiro duro na calada

Apenas repousava no sono
sereno do dever cumprido,
pois participou da luta dos sem-terra,
pois afinal a sua gente, que
foi encontrada por Cabral,
continua sem terra, mesmo
sendo os primeiros habitantes do Brasil.

Apenas um momento de uma sociedade
insana, covarde, egoísta e desumana,
deu fim ao seu sono que se tornou
eterno, machucando a consciência
e a dignidade humana.

Apenas o estardalhaço das notícias,
a dor de todos, os discursos inflamados
dos espertalhões de última hora, soaram
como as manchetes para
um mundo de uma realidade cruel.

Apenas “brincadeira” de jovens
sem perspectivas, mimados pela sociedade
de consumo, numa destruição incomum
dos valores humanos, rasgaram a madrugada
do seu dia, derramando sangue em pleno
Dia do Índio.

Apenas Galdino de Jesus dos Santos.
Índios pataxós, assassinados num Brasil real,
de curta memória e longa exploração.
Apenas...

EUCLIDES LEÃO CUNHA: uma biografia exemplar

Residiu em Anápolis durante 25 anos, cidade que ele considera como sua terra, porque chegou a ela aos sete anos de idade, portanto passando a infância, a juventude e parte da vida adulta respirando o ar saudável dessa terra: Euclides Leão Cunha, nasceu em Rio Verde-GO em 1932, filho de Jandyra Leão Cunha e de Fernando Ferreira da Cunha.

Seu pai, mais conhecido como Fernando Cunha, era natural de Santa Maria, Município de Uberlândia-MG, e ficou órfão de pai e mãe aos dez anos de idade. Os avós paternos eram Bonifácio Ferreira da Cunha e Ana Rita Cunha. O primeiro irmão de seu pai, – Carlos Cunha, ou Carrinho – que já estava morando em Rio Verde, buscou os manos menores para essa cidade goiana e assim ele, aos dez anos, passou a trabalhar numa loja. Era analfabeto e aprendeu a ler no jornal Lavoura & Comércio, de Uberaba-MG, com a ajuda de um colega de trabalho. A loja era de propriedade de um tio daquele que viria a ser governador de Goiás, Jerônimo Coimbra Bueno, chamado Samita. Fernando Cunha aprendeu a ler e se desenvolveu, afeiçoou-se à boa leitura, alcançando um nível cultural invejável. Trabalhou durante muito tempo na loja e posteriormente, quando Pedro Ludovico assumiu a interventoria federal de Goiás em 1930, foi nomeado coletor de Rio Verde, sendo transferido para Itumbiara – que na época era denominada Santa Rita do Paranaíba. Assim, Euclides, nascido em Rio Verde, mudou-se para Itumbiara com um ano de idade e aos sete anos transferiu-se para Anápolis, em razão da promoção de seu pai para essa cidade, vindo a passar boa parte da vida aí, principalmente os anos dourados da juventude. Em Anápolis nasceram seus primeiros filhos.

Jandyra Leão Cunha, sua progenitora, nasceu em Rio Verde, mas teve esmerada formação escolar em Uberaba, porque ela era originária dessa importante cidade do Triângulo Mineiro, da tradicional família Leão. Faleceu com 74 anos de idade em Anápolis.

A mãe de Euclides teve 12 filhos, mas alguns faleceram ainda crianças, sobrevivendo:

Glicério, que fez Odontologia enfrentando imensuráveis dificuldades, na distante cidade paulista de Ribeirão Preto, porque a família morava em Itumbiara, e sua mãe fabricava sabão artesanalmente e vendia para aplicar o produto em benefício dos estudos do filho. Mas ele conseguiu formar-se, voltou e se casou com uma jovem de Itumbiara chamada Esterlina Marquez, passou a exercer a profissão para a qual se formara com brilhantismo, adquiriu uma pequena propriedade rural, mas depois se transferiu junto com o pai para Anápolis e oportunamente foi nomeado prefeito de Goiatuba, onde permaneceu durante cerca de quatro anos, falecendo em 1942. A viúva alçou-se a um emprego público e conseguiu custear os estudos dos filhos, Estércio Marquez Cunha – compositor e professor de música – e Amaury, engenheiro, que tinha vinte dias de vida quando o pai faleceu. O terceiro filho de Fernando e Jandyra Cunha foi uma moça, que faleceu ainda jovem, em seguida Adherbal (Babá) – já falecido; João Cunha, que foi vice-prefeito de Anápolis, onde mora e já passou por sérios problemas de saúde, mas tapeou a morte, tendo sofrido enfarte, câncer de próstata, câncer de garganta, mas está bem de saúde e bem humorado, sendo considerado na família o “campeão das rebordosas”; Carlito, o caçula, faleceu em de 2004 vítima de enfarte; Fernando Cunha Júnior, dono de uma notável biografia de homem público, tendo sido deputado federal por vários mandatos, num total de 20 anos de Câmara Federal, com uma folha enorme e rica de serviços prestados à Nação.

Primeiras letras
Euclides Leão Cunha nasceu em Rio Verde em 1932, e com um ano de idade seus pais mudaram-se para Santa Rita do Paranaíba – que mais tarde teve o nome alterado para Itumbiara – onde passou a residir numa casa localizada ao lado da Recebedoria do Estado, ao pé da ponte sobre o rio Paranaíba. Foi aí, naturalmente, nesse ambiente bucólico, que o garoto despertou para a vida. Aos sete anos mudou-se novamente, desta vez para Anápolis, onde seu pai foi exercer o cargo de coletor. Em Anápolis Euclides freqüentou a primeira escola; sua primeira professora chamava-se Quita, de família grada, mãe de Aldo Arantes, que depois se tornou figura conhecida nacionalmente por sua intrépida liderança estudantil, na época do ápice do regime militar. Fez o curso Fundamental, depois cursou Contabilidade e exerceu a profissão de contador durante algum tempo, transferindo-se para São Paulo, aonde foi com a intenção de cursar Ciências Econômicas. Foi um passo inútil, porquanto a Escola de Comércio de Anápolis, onde ele cursara o 2.º Grau, estava em situação irregular, não podendo expedir o diploma. Então Euclides desistiu de continuar na Paulicéia e retornou para Anápolis. Quando a escola finalmente foi autorizada a expedir o diploma – dois anos depois – tentou ingressar no curso de Direito, mas houve uma ilegalidade, uma exigência absurda da sua Certidão de Nascimento, o que o obrigou a desistir, só voltando a insistir na tentativa muitos anos depois, já adulto, mas dessa vez com sucesso.

Na infância auxiliava seu pai na rude faina de uma chácara, fazendo adobe para construir casa, construindo galinheiro, plantando hortaliça, enfim, fazendo de tudo na pequena propriedade. Pôs-se a trabalhar como contador, logo após concluir o curso, e logo assumiu a responsabilidade pelos serviços contábeis de uma empresa agrícola localizada em Ceres, onde conheceu uma formosa moça maranhense de Riachão, enamorando-se e se casando. A jovem era Wilna de Jesus Coelho, sua consorte até hoje, tendo cumprido sem dificuldade a promessa de união perpétua, “até que a morte os separe”, feita no decorrer da cerimônia. Ela é professora, exemplo de esposa e mãe, ajudou Euclides a encaminhar os filhos na vida com muita eficiência, autoridade e carinho.

Escassez em tempo de guerra
Na época da Segunda Guerra Mundial houve escassez de muitos produtos na mesa dos brasileiros, principalmente das cidades. Euclides Cunha era criança, mas já um pouco crescido e, como a família residia em Anápolis, sentiu o drama diretamente. Sobrou para a meninada, que tinha de sair para a zona rural em busca de produtos. Faltou gasolina, tiveram de criar uma modalidade de combustível para movimentar os veículos auto-motores – o gasogênio – movido a carvão. Um produto que faltou – que era extremamente racionado – foi o açúcar, então todos eram obrigados a se utilizar do açúcar mascavo, fabricado e comercializado nos engenhos-de-açúcar artesanais nas fazendas e sítios. Esse produto era chamado popularmente em Minas Gerais e em Goiás de açúcar-de-forma; Euclides e outros garotos saíam para as fazendas, às vezes percorrendo longas distâncias a pé, em busca do açúcar. Se por um lado era sacrifício, se causava preocupação aos pais essa jornada de crianças, devido à necessidade, por outro lado, para a garotada isso era motivo de divertimento, trabalho que eles transformavam em jornadas aprazíveis e ficaram inesquecíveis.

Primeiros ofícios
Euclides casou-se quando trabalhava na empresa agrícola Companhia Cafeeira Goiana como contador, na então nascente cidade de Ceres, onde se dava muito bem com os colegas e superiores, principalmente com um polonês chamado Adan Doria, que era o diretor. Mas numa certa altura sua esposa começou a ter problemas de saúde, com crises de asma todas as vezes que chegava na fazenda e então era preciso transportá-la com urgência para Anápolis em busca de tratamento. Melhorava, voltava para a fazenda e as crises de asma ressurgiam. Por essas crises cíclicas de saúde da esposa, Euclides tomou a iniciativa de deixar o trabalho em Ceres e retornou para Anápolis, indo trabalhar com o empresário e líder político Jonas Duarte, assumindo o cargo de diretor comercial da gráfica e, concomitantemente, do jornal editado pelo destacado prócer anapolino, que já havia sido até governador de Goiás. O jornal era dirigido pelo filho do proprietário, o jovem Haroldo Duarte, que mais tarde também teria destaque na vida pública, como deputado estadual – o mais jovem eleito até então – e deputado federal com atuação brilhante. O jornal fez história na cidade e no Estado, era o arauto das idéias políticas pessedistas – relativas ao PSD (Partido Social Democrático) – corrente política majoritária na época e tinha o apropriado título de O Anápolis, que era semanário e nessa época passou a ser diário, melhorando sua performance como importante voz da cidade, como amplificador de idéias – novas ideologias efervesciam então – e servindo de esteio para a divulgação do nome do então jovem candidato a deputado estadual Haroldo Duarte.

Em 1960 Jonas Duarte foi eleito prefeito de Anápolis e Euclides passou a trabalhar na Prefeitura. Mas em 1962 o então governador Mauro Borges criou um fato inusitado, que foi a modalidade de concurso público para ingresso de servidores nos quadros de pessoal do Estado e abriu concurso para o preenchimento de vagas no Fisco, tendo Euclides participado e sido aprovado em colocação privilegiada.

Quando assumiu suas funções no Fisco, Euclides residia em Anápolis, e tendo sido lotado em Pires do Rio, viajava para aquela cidade todas as segundas-feiras de madrugada e retornava para sua residência nas sextas-feiras à noite. Em Pires do Rio ele tomou a iniciativa de fazer um levantamento no Banco do Brasil sobre os financiamentos que havia para compra de gado – porque ele sabia da existência de uma grande quantidade de financiamento com essa finalidade. Ele estava ciente, entretanto, que os tomadores do dinheiro desviavam a finalidade, e não compravam gado coisa nenhuma, e era preciso haver a comprovação de compra e então ele fez o levantamento, as autuações e notificou todo mundo para recolher o imposto, eles não recolheram e então ele lavrou os autos de infração, fazendo o relatório desse trabalho para a Secretaria da Fazenda, o que impressionou de tal forma o diretor da Receita que, em conseqüência, baixou portaria destinada a todas as regiões fiscais, com a orientação de que fosse realizado levantamento idêntico. De maneira que a iniciativa de Euclides Cunha serviu de exemplo para os demais fiscais, coisa que ficou bem marcada na época.

Entre os autuados pela irregularidade, havia muitos políticos importantes da cidade, citando-se o então prefeito, mas este pagou a multa sem reclamar.

Como efeito daquela iniciativa, o novo herói do fisco, indo rotineiramente à Secretaria da Fazenda na Capital do Estado, tomou conhecimento de que estava sendo transferido para Jataí na qualidade de delegado fiscal, promoção baseada absolutamente na competência, resultado de uma iniciativa criadora e fruto da coragem pessoal que tivera ao tomar sozinho a decisão de aplicar multas aos poderosos da época, habituados à locupletação impune, às custas de artimanhas capciosas, em prejuízo do erário e do aparato econômico-financeiro público.

Euclides ocupou o cargo de delegado fiscal de Jataí durante alguns anos, missão extremamente árdua, uma vez que ele era fiscal neófito, sendo rapidamente guindado a uma posição profissional de relevo e de enorme responsabilidade, levando-se em conta também que a Delegacia Fiscal de Jataí abrangia uma região muito extensa, que exigia muito de seus gestores. Mas desincumbiu-se com sabedoria e competência diante dos obstáculos, tornando-se um nome de muito respeito junto aos quadros do Fisco, bem como junto ao Governo do Estado, pela seriedade e eficácia na sua atuação e na pertinaz probidade no exercício de suas funções.

A região fiscal com sede em Jataí abrangia uma área muito vasta, com dez municípios na sua composição, estes também de grande extensão territorial, e muitos deles localizados nas divisas de Goiás com Mato Grosso (700 km) e Minas Gerais. Eram inumeráveis os problemas e dificuldades, mas o jovem e competente fiscal permaneceu à frente do posto durante quatro anos. Seus subordinados eram insuficientes para o cumprimento da missão em tão grande território, tendo o próprio responsável a incumbência de percorrer mensalmente as coletorias na coleta dos balancetes e até mesmo do dinheiro arrecadado em impostos – em espécie. Para disfarçar o volume de dinheiro que transportava sozinho em um jipe, o esperto fiscal levava consigo nas viagens um saco de aniagem completamente sujo de fezes de porco ou de frango, o qual ficava amarrado no piso da viatura e uma pasta grande de couro, que não abandonava de maneira nenhuma, em nenhum momento, sendo que ali levava papéis inúteis, como jornais velhos. Os balancetes eram empacotados em cada Coletoria por onde passava, e colocava dentro do saco juntamente com o dinheiro arrecadado, que, naturalmente, era em volume enorme, capaz de chamar a atenção de qualquer meliante. Ele pegava o dinheiro disfarçadamente, olhava em volta para cuidar que ninguém estava observando, atirava as inúmeras notas dentro do saco e seguia viagem com aquela carga perigosa escondida no fundo do jipe. Mas nunca houve a mínima tentativa de roubo, às vezes ele dava carona para pessoas desconhecidas, mas jamais alguém desconfiou que sob os próprios pés havia uma verdadeira fortuna escondida, disfarçada daquele saco sujo de excrementos de animais. Até aquela época não existia tanta ação de assaltantes como vem acontecendo nas últimas décadas, mas não se podia descartar de todo a possibilidade. Uma vez chegado à cidade de Jataí, depositava o dinheiro no banco e viajava para Goiânia, a fim de realizar a devida prestação de contas junto à Secretaria da Fazenda.

Entre os servidores do Fisco Estadual à disposição do delegado regional, havia um que era considerado excêntrico, dono de atitudes estranhas, que era chamado de doido pelos conhecidos. Um dia esse elemento levara a viatura – um jipe ou uma rural Willys para ser lavada e quando retornava para o Posto Fiscal recebeu ordem de parar de um policial guarda de trânsito e ele não obedeceu, seguindo normalmente, ao que o guarda atirou nele pelas costas. O guarda também era um desequilibrado, acertou dois tiros num pneu do veículo e um no ombro do condutor, o qual parou na porta do Posto Fiscal, que funcionava na mesma casa onde Euclides morava, apavorado, em altos brados e gestos desesperados, numa agitação sem tamanho. Euclides simplesmente saiu correndo, pulou dentro do veículo e foi em disparada rumo ao hospital, tendo o pneu furado pelas balas terminado de se esvaziar justamente na porta, tendo o rapaz sido atendido prontamente pela equipe de profissionais da saúde. Naturalmente, não foi um ferimento grave e o caso foi resolvido com facilidade ali mesmo, sem que houvesse a necessidade de cirurgia de maior porte.

Quanto ao guarda desequilibrado, despreparado, Euclides comunicou o fato ao Governo, e ele foi transferido para Goiânia, depois reincidiu no mesmo ato criminoso de atirar em pessoas a esmo, até que foi devidamente punido.

Família
A primeira filha do casal Euclides/Wilna Cunha é Marília, nascida em Anápolis. Diplomada farmacêutica, fez também outros cursos até patrocinados pela ONU, esteve na Bolívia, passou seis meses em Angola prestando serviços à Unicef, casou-se com um baiano e tem três filhas: Mayra, que está cursando engenharia na UnB; Isadora, também na UnB, onde cursa Ciências Sociais e tem a intenção de se dedicar ao serviço diplomático; e a caçula, Júlia, que está na fase de preparativo para o vestibular na UnB.

O segundo filho é Leandro, natural de Anápolis, que entrou para o Fisco estadual por concurso em 1984, leciona também e ainda faz cinema, mais como hobby, matéria em que é bastante versado, dando aulas de cinema na UCG. É casado com Marla Cardoso e têm duas filhas: Mahalia, que está cursando Engenharia Florestal na UnB e a pequena Beatriz, fazendo o curso médio.

A terceira filha é Jacqueline, nascida em Jataí. É pedagoga, casada com um funcionário do Senai, José Mello, ocupa atualmente cargo de relevância na Secretaria Estadual de Educação, desde o primeiro mandato do governador Marconi Perillo.

O filho caçula é Leonardo, natural de Goiânia, advogado e professor de Direito na Universidade Salgado de Oliveira (Universo), casado com Ana Cláudia, assistente social formada pela UFG. O casal tem uma filha pequena, Maria Luíza. Leonardo escreve artigos de cunho jurídico para órgãos de imprensa de Goiás.

Transferência para Goiânia
Com o advento do Golpe Militar, Euclides foi transferido para Itumbiara, trabalhando na região sul, incluindo Morrinhos e outras cidades importantes. Em 1966 começou a fazer o curso de Direito na UFG e por isso pediu transferência para a Capital do Estado. Em seguida adveio a Reforma Tributária e foi encarregado de dar treinamento para o pessoal na região e quando chegou o momento da implantação da Reforma Tributária, posicionou-se pessoalmente no Posto Fiscal, para resolver os problemas que iam surgindo com a mudança, a implantação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, já que até então vigorava o Imposto sobre Vendas e Consignações e a inovação causou dúvidas e reclamações, sendo necessária a atuação de profissionais detentores de conhecimento e competência para lidar com a questão a contento.

Em seguida fez o curso da Esaf - Escola Superior de Administração Tributária do Ministério da Fazenda, na primeira turma. Foram seis meses residindo na escola em Brasília e o curso proporcionou novas oportunidades para Euclides, em razão do qual acabou recebendo convite para prestar serviços na Secretaria de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, a qual patrocinava o curso. O convite foi para a prestação de serviços durante seis meses, mas Euclides nunca mais voltou a trabalhar em Goiás, porque o convite foi prorrogado para mais um ano, mais outro e assim sucessivamente, tendo ele passado dez anos lá, até atingir o tempo de serviço para requerer aposentadoria, o que fez em 1982 e ainda permaneceu no mesmo lugar durante mais algum tempo como comissionado. Nessa época teve a oportunidade de conhecer boa parte do Brasil, realizando auditorias nas empresas exportadoras das regiões Norte e Nordeste.

Permaneceu no cargo até que um seu amigo, o deputado Derval de Paiva, foi nomeado para a Diretoria Comercial da CFP – Companhia de Financiamento da Produção – do Ministério da Agricultura – recebendo dele o convite apara ir auxiliá-lo, porque necessitava de uma pessoa com o perfil que ele apresentava: confiança e competência.

Na CFP Euclides assumiu a Superintendência de Transporte e Armazenamento, responsável por milhões de toneladas de produtos armazenados, e ele passou cerca de três anos extremamente atarefado para resolver os problemas, no sentido de não deixar que se perdesse produto algum estocado a céu aberto. Para se desincumbir dessas tarefas, valeu-lhe a experiência adquirida como contador, muitos anos antes, em Anápolis. Permaneceu nesse posto como fiel escudeiro do deputado Derval de Paiva até a saída deste, quando deixou o cargo e retornou para Goiânia.

Uma vez novamente na Capital do Estado, mesmo aposentado, Euclides não cessou de exercer atividades profissionais e abriu, pela primeira vez, um escritório de Advocacia especializado em legislação tributária, porque havia uma quantidade enorme de autos de infração em andamento contra empresas, da parte da CFP e, como ele tinha conhecimento de causa, foi credenciado e fez sociedade com um advogado que hoje é juiz de direito no Distrito Federal, Dr. Olair Sampaio. Passaram a trabalhar na questão e dentro de pouco tempo desenredaram todos os problemas pendentes dos autos de infração e com isso Euclides ganhou uma boa soma de dinheiro com Advocacia, tendo adquirido uma aprazível chácara no Município de Bela Vista de Goiás, coisa que teria sido impossível só com os salários de funcionário público estadual.

Episódio pitoresco
Havia um comerciante turco em Pires do Rio e numa fiscalização rotineira às empresas comerciais da cidade, Euclides adentrou ao estabelecimento do respeitável libanês (ou sírio) e estava realizando seu trabalho, com o proprietário a atendê-lo polidamente. Não havia novidade a ser notada ou anotada, tudo transcorria normalmente, quando adentrou abruptamente uma filha do turco, também comerciante, a qual não conhecia o fiscal que estava no local, atento. A moça chegou para comprar do pai, apressada e falando alto, um engradado de aguardente de cana. O pai ficou muito “apertado”, porque o fiscal estava presente e a pinga que ele vendia era produto clandestino, fabricado artesanalmente nas fazendas, a chamada pinga de engenho, ou pinga de alambique, naturalmente sem nota fiscal. Daí que o comerciante falou para a filha que não vendia pinga, mas ela insistiu, aumentando o tom de voz, exigindo a pinga, dizendo que pagava, que não queria de graça nem fiado e o homem também esbravejando que não tinha pinga nenhuma, de maneira que a cena se tornara tragicômica, em conseqüência do “apuro” do turco na situação, pai ralhando com a filha, filha ralhando com o pai, este gritando que ela fosse embora, e o fiscal Euclides se contendo para não estourar o pescoço de tanta vontade de rir, mas sem poder. Depois de muita altercação, de muito barulho que chamou a atenção dos vizinhos, a turquinha se foi furiosa. Euclides descobriu assim que o comerciante, apesar das gentilezas, dos salamaleques com que o tratava, era um belo sonegador. Mas, mesmo assim, sabendo tratar-se de coisa de pouca monta, preferiu ignorar o fato e não exigiu para ver o “estoque” do apavorado comerciante árabe.

Vida atual
Euclides Leão Cunha deixou de atuar como advogado, vivendo apenas com sua aposentadoria, já que vem enfrentando problemas de saúde, mas exerce a função de colaborador do Centro Espírita Irmã Dulce, o qual desenvolve um trabalho volumoso e importante num bairro pobre de Aparecida de Goiânia – Independência das Mansões – um loteamento muito grande cujos lotes foram distribuídos gratuitamente pelo Governo de Goiás há alguns anos, os beneficiados vieram de toda parte e fizeram seus barracos de qualquer maneira, já que quase ninguém tinha emprego. Quando começou a iniciativa, havia muita fome entre a população, todo domingo havia gente desmaiando na fila, por causa da desnutrição. Começou com uma sopa, que era feita no próprio Centro Espírita, localizado no bairro Faiçalville, em Goiânia e transportado para o local. Mas em outra etapa passou-se ao preparo no próprio bairro com boa estrutura montada num amplo espaço, atendendo crianças e adultos, em torno de 600 pessoas por domingo. Eles recebem vitamina de frutas, pão, bolachas e outros alimentos. Está aumentando a quantidade de colaboradores, tanto dos que fazem doações de gêneros quanto dos que se dispõem ao trabalho pessoal voluntário. Por isso a distribuição ficou mais fácil. São preparados entre 500 e 600 litros de sopa, que é distribuída aos domingos de manhã. Os responsáveis pelo caritativo trabalho notaram desde o começo que muitas pessoas ficavam a semana inteira sem comer e aos domingos iam para a fila pegar a sopa e desmaiavam de fome. Mas isso não acontece mais, porque todos recebem uma vasilha cheia de sopa e muitos levam para casa também uma cesta de alimentos, as crianças ganham bolachas e pães. Muitas empresas doam regularmente cestas básicas de alimentos, que são distribuídas e assim as famílias cadastradas recebem normalmente, o que dá para a sua alimentação durante a semana. É uma ocupação de Euclides e seus irmãos de Centro Espírita que ajuda, pelo menos, a reduzir a fome daquele povo.

O presidente do Centro Espírita Irmã Dulce e principal responsável pelo trabalho da sopa é o abnegado Sílvio Miró de Carvalho Neto. Ele é aposentado da Saneago, está há anos nessa luta desesperada em prol dos mais necessitados, e já conseguiu pôr em funcionamento uma creche com capacidade para abrigar 80 crianças filhas de presidiários, prostitutas e outros excluídos sociais; essa obra localiza-se junto ao Centro, no Faiçalville. E ao lado da Creche, uma escola profissionalizante. No futuro o aparato creche/escola profissionalizante terá condições de atender até 300 crianças. A vida de Sílvio é dedicada a essas obras. Tendo todos esses empreendimentos de cunho social, filantrópico e educativo prosperado, inicialmente com a enorme dedicação e esforço pessoal de Sílvio e mais uma meia dúzia de voluntários do Centro Espírita Irmã Dulce – entre os quais Euclides Cunha – a obra conquistou credibilidade junto à sociedade e atualmente há uma grande afluência de voluntários para todas as atividades, que exigem muito desprendimento e sacrifício pessoal.

Euclides possui uma aprazível chácara localizada no Município de Bela Vista de Goiás, a poucos quilômetros de Goiânia, com muita água, inclusive com uma nascente límpida e cristalina. São sete alqueires que, além de propiciar um lazer sadio para Euclides, sua caríssima Wilna – filhos e filhas com os respectivos cônjuges e mais sete netas, e o sobrinho Elvis – familiares e amigos, constituem o ganha-pão de várias pessoas que prestam serviços à pequena propriedade. Entre esses se destaca uma figura que já faz parte da paisagem física e humana local, tal é sua importância: a boa Neide, que a todos conquista com seu valor humano, sua bondade para com os circunstantes e o desejo de doar os conhecimentos fitoterápicos, herdados dos seus antepassados indígenas.

Instado a fazê-lo, Euclides Leão Cunha, com toda a sua longa vivência e experiência com a vida, com a convivência com muita gente – pessoa que viveu a maior parte da existência (toda sua vida profissional) em um século, dá um sábio conselho para a juventude de outro século:

“Procuro sempre seguir aquilo que herdei do meu pai e transmiti para meus filhos, transmito para minhas netas e para todas as pessoas com quem convivo: procuro levar a vida com honestidade, ser solidário com as pessoas necessitadas; deixar de lado o egoísmo e a busca desenfreada de riquezas, acumulação de fortuna”.

Depoimento prestado para Hélio Nascente, em 12.11.2007.

UMA CONVERSA SEM PÉ E SEM CABEÇA


Sinésio Dioliveira*

Saber ouvir é uma tarefa nada fácil no mundo da comunicação. Às vezes, o que se julga ser um diálogo não passa de monólogo: cada um ouvindo a si mesmo na conversa que não estão tendo. O silêncio que ocorre nos momentos de "diálogo" pode não ser o ato de ouvir o outro, mas sim a espera do momento de falar. A inabilidade de comunicação em algumas pessoas costuma ser tanta que, às vezes, elas nem deixam o outro falar. O que não deixa de ser pior que ficar calado.

Dias atrás, numa fila de banco, enquanto aguardava minha vez de ser atendido, presenciei a conversa de duas mulheres. Não tive como fechar os ouvidos. Até me deu vontade de fazer o que faz uma criança quando não quer ouvir algo: além de tapar os ouvidos, ainda cantarola alguma coisa ou diz coisas desconexas. O assunto delas era óculos esportivos. Cada uma, entretanto, defendendo uma marca. Notei que não se ouviam. Essa conversa sem pé e sem cabeça das duas lobas me lembrou uma fábula, que vou aqui contá-la.

Foi na primavera de um ano desconhecido que aconteceu uma discussão infrutífera entre um beija-flor e um urubu. A beleza da temporada escancarou nas borboletas diversas e multicoloridas, que voavam de flor em flor em busca de néctar.

O urubu estava pousado no galho de um jatobá seco, cuja morte veio de um raio furioso. O beija-flor, como é comum nesses pequenos pássaros, chegou apressado, pousou ao lado do urubu e deu início à conversa, num tom de soberba:

– Fico indignado com sua maneira de viver, de se alimentar. Não sei como consegue comer carniça! Você deveria fazer como faço: se alimentar de néctar. É provável que até suas penas percam esse negror horrível e ganhe brilho. Até o seu mau cheiro vai acabar. O urubu deveria ter ficado na sua. Entretanto, contagiado pelas palavras ofensivas da avezinha, revidou com outras semelhantes no propósito de arrogância e com mais pedras:

– Você está muito enganado, meu caro. Minha alimentação é muito melhor que a sua. E mais: não preciso ficar voando de flor em flor à procura de gotículas de néctar. Posso até comer carniça, mas nunca lhe vi voando entre as nuvens como faço. Meu voo não é rasteiro como o seu. Nem tamanho você tem!

No tronco da árvore em que estavam pousados, havia um buraco, no qual morava uma coruja. A discussão dos dois acabou acordando-a. Visto que estava com três filhotes, isso lhe tomava muito tempo em voos noturnos à procura de comida. A coruja, enraivecida com o blablabá, saiu de sua toca e deu-lhes um sermão (que os dois nunca entenderam bem).

– Vocês, além da falta de educação, por ficarem discutindo na porta da minha casa e com isso não só me acordando como também a meus filhos, estão perdendo tempo numa conversa banal, que não vai dar em nada. O que cada um gosta deve bastar tão-somente a cada um de vocês. O tempo, meus caros, é muito precioso e não deve ser gasto com discussões fúteis.

No momento da repreensão da coruja, apareceu um tamanduá, que seguia uma trilha de formigas saúvas, que eram sugadas por sua língua comprida. A coruja, bicho ladino que é, ao perceber o tamanduá, apontou-o aos dois e encerrou seu sermão de uma maneira enigmática:

– Que tal vocês envolverem o tamanduá nessa conversa oca que estão travando? Não acredito que ele, em vez de formigas, vá dizer que o melhor alimento é néctar ou carniça. Vão bater boca bem longe da porta da minha casa!

*Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de Português e fotógrafo.

URSULINO LEÃO: Discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras


Posse ocorrida a 6 de março de 1975, no auditório do Palácio do Buriti, em Brasília.

Discurso do Acadêmico Ursulino Leão:

Nasci nas terras anhangüerinas de Crixás, sob atmosfera e feitiço e ouro extinto, à beira de um rio também chamado Vermelho. Mas o sangue e a carne em que vivo, eu os trouxe de fontes maranhenses: uma de intrepidez e descortino; a outra que se esgotou mais cedo, era de sensibilidade e fé.

Razões me sobram, pois, para sentir, nesta minha posse na Academia Brasiliense de Letras, e emoção singular.

De fato: goiano, vim certa vez ai planalto nas calças minúsculas da infância, dormi à beira do Torto, vi distâncias, apalpei solidões, presenciei estrelas regarem, com luz de sabedoria e bênçãos, a terra predestinada. Depois, homem, cruzei, recruzei, multicruzei os sítios reservados, imaginando que a ordenação constitucional da mudança, transfigurada em casas e homens, ruas e automóveis, trabalho, expansão e partilha, jamais surgiria naqueles ermos de poentes raros, de campinas tranqüilas, de águas puras e longas, abundantes e mansas.

Mas vieram os acontecimentos. E as dúvidas foram se convertendo em máquinas que assombravam os silêncios e enfrentavam o dia e as trevas com a força-fúria progressista de seus roncos. Na incredulidade de muitos e nas desesperanças de alguns nasceram as flores da certeza, da participação, do entusiasmo: que são flores de verdade capazes de permanecer anos e anos na alma dos homens sem que se lhes murche uma só pétala.

No vazio que o vento e a chuva disputavam correndo, braços ofertantes, inúmeros, de mulheres também, começam a trançar o esforço com a alegria, trabalho com prazer e a misturar suor com sonhos e sonhos com terraplenagem, sondas e concreto, para edificar, como edificaram, a cidade cuja planta é um vôo.

E a construíram, pragmática e bela, adejante e sólida. Aprontaram-na com a colaboração de todo o Brasil e para as necessidades totais da Pátria.

Então passaram a chegar os esperados Poderes, a fim de se alterem, no chão de meu Estado, às dimensões de grandeza que o povo lhes exigia, argumentando com silogismos que a região oferta: os céus possuem cores exclusivas, os chapadões convidam a marchas e conquistas, as lonjuras se diluem na eqüidistância, os astros noturnos estão próximos e seu brilho adverte e ensina. Assim, o homem e suas instituições logo percebem que o lugar convoca o saber. Pede estradas de integração, aclara os objetivos nacionais, de liderança e ação, ordem e segurança, amor e paz. Que o sítio convém à morada da poesia.

Fincou-se o Executivo em nome de alvas permanentes a abriu à administração pública canais ágeis por onde hoje se desloca o fluxo revolucionário, que arrasta às fronteiras e às carências soluções ricas de planejamento e coragem.

O Legislativo armou residência sob uma concha lançada para o firmamento, perenemente, simbolizando que a Liberdade, “noiva do sol”, é aspiração comum dos que a habitam e onde outra concha, voltada para a terra, anuncia que a segurança da nação vem do povo que a forjou e só se efetiva em desenvolvimento integral se ao lado dela mora a Liberdade.

O Judiciário, guardião desarmado da lei, recolhido na praça que lhe foi consignada, observa que a cidade amacia ruídos e anestesia inquietações para que as árduas horas de cumprimento da sua excelsa missão perfaçam, com suma justiça, o monumento imperecível dos julgamentos.

E agora, aí está Brasília: perfeitamente senhora de seu destino de capital de um país em que os milagres do progresso sucedem cada dia, evidenciados por taxas inacreditáveis de crescimento econômico, por obras onde o arrojo se equipara à competência, por aquisições de cunho cultural que incorporam ao conhecimento e à atividade produtora milhares de cérebros, plasmados tanto no Mobral como nas Universidades.

Contudo, Brasília não é apenas a cidade ímpar, chamada por alguns de Esperança, por outros de Alvorada; ela virou símbolo da raça brasileira, na sua força criadora, na sua capacidade de querer e poder.

Já no itinerário do esteta se transmuda em arroubo ou pasmo, quando o velho artesão que elabora os crepúsculos do altiplano, recama de verde, vermelho e sangue, amarelo, ouro e rosa, cinza, azul e anil as linhas alvissareiras de uma arquitetura, mais escultura que construção.

Todavia, por que insisto em arrancar à língua desapossada os vocábulos que lhe cantem história e esplendor?

O poeta WALDEMAR LOPES, que me escuta com fidalguia o ingresso nesta Casa, traduzindo seu colega uruguaio CARLOS RIOS, oferece no “Canto a Brasília” a beleza que persigo. É só tomar-lhe, por empréstimo, os versos e o talento:

“A cidade nasceu para o futuro
contra arautos pressagos e descrentes,
contra os tímidos, tardos e agoureiros
contra quem teme os saltos do progresso.
Nem as alterações mais imprevistas,
Nem novas condições, quando mudados
Os homens e os sistemas, conseguiram
Matar o seu impulso, ou derrotá-la.
Pois não é monumento a glórias vãs,
Nem um ato gratuito de grandeza,
Mas a bela expressão pura e precisa
De uma pátria a criar seu Amanhã,
Irrevogável signo do destino
Sobre os vôos audazes do otimismo.
E a cidade se fez. Só um decênio
bastou para fazê-la: eis o milagre!
Jogou a Geometria com seus cubos,
curvas ousadas, arcos desnudados,
na despojada e enorme construção
caprichosa e arrojada, espaço nobre
em que buscam os homens seu roteiro
para encontrar no tempo o ano dois mil.
Isolada de todas as fronteiras,
alerta sentinela, no Altiplano,
vela Brasília, altiva, o Brasil novo
e de um povo feliz o alto destino”

Pois bem, “nesta cidade que nasceu para o futuro, contra arautos pressagos e descrentes, contra os tímidos, tardos e agoureiros, contra quem teme os saltos do progresso”, alguns dos recém-chegados se reuniram para alevantar uma tenda a Minerva e nela agasalhar a arte literária que traziam por bagagem. Seu idealismo, sua firmeza, sua decisão estavam alicerçados no renome de cada qual e na convicção de que a ACADEMIA BRASILIENSE DE LETRAS gozava de espaço reservado nas necessidades intelectuais da altiplanura a fim de ser entidade que, simultaneamente congregue os homens de letras transferidos para a Capital da República a leve a todas as demais regiões do país as mensagens de integração e otimismo que tecem a natureza espiritual desta cidade de homens ousados, valorosos candangos. Academia local e nacional a um só tempo, pela posição e categoria de sua cidade-sede, é como foco de luz que, alteado num centro, ilumina e aquece todos os pontos do ambiente. Fundada também com o intuito primacial de preservar a machadiana unidade literária, na multiplicidade cultural que somos, a Casa de PEREIRA LIRA, do Ministro JOSÉ PEREIRA LIRA, paradigmal figura de intelectual e amigo, se identifica com os nossos chapadões e absorve aquela sua ânsia de ir, com o vento, aos infinitos da criação; seu dom primitivo de inventar a beleza com retorcidos cerrados, os quais um paisagista rareia para se tornarem em jardim; seu espetáculo quotidiano das luzes, cedo e à tarde, quando lampadário moderno o prolonga noite a dentro; as rodovias em reta, as cintilações siderais tão próximas, os prédios na forma infantil – isto é, simples e agradável – dos retângulos e das torres.

A Academia, asa singela em que o estímulo e a recompensa viajam à mesa do escritor; fórmula estética que recria pau-terra e céus, estrada, casa, a estrela e o homem no esforço transfigurador do poema e do ensaio, do romance e do conto; simbiose e movimento; prefulgência, sentido e meta, a Academia é Brasília nas letras.

Graças à irresistível abrangência da Capital e sua Academia é que, acionado por lisonjeiro convite de ALMEIDA FISCHER, DOMINGOS CARVALHO, WALDEMAR LOPES e ADERBAL JUREMA aqui me vejo, envolto por júbilos e honrarias, mas seguido também de carecimentos que não escondo e dos velhos sonhos de uma carreira literária que não realizei, porque não pude, como pôde Ulisses, resistir ao chamamento das Sereias: no meu caso, a Advocacia e a Política; duas fascinantes Sereias...

E é dessa maneira, Senhores Acadêmicos, que entro para a vossa companhia, onde deparo e homenageio a privilegiada inteligência, o conhecimento atuante e almas ricas das mais perfeitas sensibilidades.

Aqui estou e chego trazendo meu Goiás que se partiu, generoso e vidente, para que a Nação se expandisse no rumo das potencialidades e das afirmações, redescobrindo, com tratores e aviões, motoniveladoras e mapeamentos, engenheiros e políticos, economistas, soldados e universitários, os caminhos da penetração que bandeirantes traçaram nas águas dos grandes rios, nos campos favoráveis e nas matas, cujas árvores entremeavam a folhagem no gesto inútil de esconder, às passadas heróicas, o ouro e o índio.

Trago meu Estado, que aceitou o desafio de sua situação geográfica e ora irradia para toda a federação, positivas realizações de progresso social, onde a cultura e essencialmente a cultura hodierna é meta prioritária, do povo e seu governo.

Venho assentar-me ao vosso lado, mas não me acho sozinho. Só, talvez não tivesse ânimo de vir. Sinto ao pé de mim as forças de minha gente, na sua vocação para participar e servir. A luz desse momento, portanto, não resplandece num, mas em muitos. Os muitos que em Goiás escrevem, amam as letras, acreditam que literatura não é apenas a arte do belo, pela palavra fixada, nem, como afirma POUND, “linguagem carregada de significação”: antes que tudo é vivência.

Se em mim somente refletisse, quão demasiado seria para a fragilidade de meus merecimentos!

A incumbência estatuída de falar-vos sobre Aluísio Azevedo, o patrono de minha cadeira nº 23, muito me apraz, Senhores, porque não tenho deslembrada minha ascendência maranhense, que se não me proporciona intimidade com a grandeza histórica do Estado setentrional, me suscita condições de relembrar aspectos da vida e obra de seu expressivo filho, não sob a análise profunda do conhecedor, mas com as fraquezas do sangue, os deslumbramentos, se os houver, de um parente. Se não pela carne, certamente pelo espírito...

Arrependo-me, no entanto, de haver efetuado nova leitura da obra de Aluísio Azevedo, quando deliberei escrever esta palavra de estilo.

As cenas de “O Mulato”, antológicas há tantos anos, já não me elevam aquela emoção do primeiro contato, quando as teses humanas expostas pelo revolucionário romance me escandesciam a alma ou ensombravam meus olhos; as atribuições de Magdá, nas intérminas horas do viver real e os sonhos de entrega e felicidade que diligenciava encompridar e amiudar, agora me aparecem com quase toda a sua beleza perdida; André Miranda de Melo e Costa, o Coruja, considerado por ALCIDES MAYA “triste como a dor, grande como um protesto atirado ao destino”, eu o encontro artificial e masoquista, deixando que minha preferência recaia no afortunado e belo Tobaldo, em cuja vida A. DE ALMEIDA PRADO enxerga traços da própria existência de Aluísio. Teobaldo, “jovem príncipe aborrecido” que Aluísio conduz com “tez aveludada e pura, sorriso crespo e frio, olhar indiferente e terno a um tempo” é tipo bem melhor que Amâncio, o herói lascivo do “Casa da Pensão”, onde meu interesse atual reside na indecisa Hortênsia, a que não pecou mas sofreu, a que se realizava dançando com Amâncio, tal qual a fidalga personagem de “O Homem” que ia ao paroxismo do gozo sonhando com o cavouqueiro Luís.

“Hortênsia voltou-se para ele, ia talvez desenganá-lo; mas a orquestra, que havia emudecido depois da quadrilha, deu sinal para a valsa. Era o Danúbio, de Strauss.

O rapaz ergueu-se como um soldado que ouvisse tocar o rebate.

Ela não resistiu, levantou-se de um salto e entregou-lhe a cintura.

Dançaram. A princípio vagarosamente: depois como a música se acelerasse, Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar, a cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração doida.

A música redobrou de carreira.

Foi então um rodar convulso, frenético: a casa, os móveis, as paredes, tudo girava em torno deles.

Hortênsia dançava tão bem como um rapaz. Os dois pareciam não tocar o chão; os passos casavam-se como por encanto; as pernas gravitavam envolta uma das outras com precisão mecânica.

Encheu-se a sala de pares. Amâncio fugiu com Hortênsia, sem interromper a valsa; pareciam empenhados numa conjuntura amorosa. Ela arfava, sacudindo o colo com a respiração; os seus braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos amorteciam-se ao hálito fogoso do estudante.

De repente, Amâncio parou, exausto. Ouvia-se-lhe de longe a respiração.

__ Não! não! balbuciava ela, quase sem poder falar.
__ Ainda! Mais um pouco!...

E abraçaram-se e de novo, freneticamente.

Quando parou a música, Hortênsia calu sobre um divã pelos braços de Amâncio.

Não podia dar uma palavra; não podia abrir os olhos. Sua respiração parecia longos suspiros contínuos e estalados”.

Por que, me pergunto, não sei regressar ao frêmito do primeiro convívio com o soberbo novelista? Por que, inquiro, não me assalta coração e mente a paixão descrita, o medo narrado, o aviltamento, a intriga e o namoro, a cobiça, o orgulho e o amor que Aluísio soube detectar em seus livros, assaz estudados? O Natal mudou mesmo ou fui eu? A verdade é que mais leitor que escritor, menos estudioso das letras que um namorado delas, sou machadiano no gosto literário e ouso procurar no escrito a construção artística, a frase elaborada, os caminhos mal divisados, o debuxo, a sutileza psicológica, o fluxo e refluxo das almas; na paisagem o que me convence é o homem.

Não representa a predileção que eu desenhe “a capacidade de retratar personagens coletivas”, que é, como lembra MASSAUD MOÍSES abraçando linha crítica de ÁLVARO LINS, “talvez, a grande força de Aluísio e sua contribuição para nossa literatura”.

Evidentemente, assume caráter de indesculpável heterodoxia subestimar a genialidade com que são modeladas famosas criações de Aluísio: o Maranhão, em “O Mulato”, de moldura para ser a imagem encaixilhada. Diante de seus preconceitos, a sociedade cheia de costumes provincianos, os seus festejos, suas tramoias e sua empáfia, inteligentemente narrados, Raimundo e Ana Rosa refluem para o plano secundário da composição.

Já em “O Cortiço”, a gente nota que o romancista se agiganta ao descrever a vida carioca, que se desenrola na periferia de um Rio em transformação: com portugueses e escravos, peixe e capoeira, danças e prostituição; miséria de toda sorte, num panorama de tropicalismo excitante. LÚCIA MIGUEL PEREIRA depõe:

“Esse pendor para o espetáculo das massas, raríssimo em nossa literatura, fez com que a personagem coletiva do cortiço seja a única que Aluísio Azevedo conseguiu fixar para sempre. Ressoante de cantigas e rixas, cheirando a comida e a roupa lavada, ele representa alguma coisa mais do que a soma de vidas humildes que abriga; é um pecado do Rio, e um momento de sua evolução que se perpetuam neste livro. O seu autor tem sido acusado de não haver criado um único tipo, uma só dessas figuras que se incorporam à sociedade civil, tão representativas são de sua época. E de fato, só recorrendo à coletividade é que atingiu em cheio a vida. O que equivale a dizer que não chegou nunca ao âmago da alma humana, que ficou na superfície – mas, a esta, exprimiu inteiramente. A sua fraqueza num ponto vem de sua força no outro, de ter sabido melhor ver do que penetrar”.

“Casa da Pensão” explora também a problemática de significação social, mas sai do subúrbio para vir ao centro urbano da Corte, penetrar-lhe as lojas, freqüentar seus luxuosos hotéis, o teatro, as atrizes, os bailes fidalgos desfruir, espreitando o gordo dinheirinho das províncias alimentar vícios citadinos, convivendo com estudantes, dissecando as moças casadoiras: é o documentário se enunciando mais alto que o enredo romanesco.

A literatura aluisiana, a que convence, a que permanece, é assim: verdadeiros painéis, onde o povo se movimenta ou a sociedade de define, com todas as suas qualidades notáveis, quer positivas, quer negativas, mais essas que aquelas. Aliás o próprio ficcionista certa vez confessou, como a justificar sua obra aos críticos vindouros: “fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação, que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho meus romances, depois redijo-os”.

Com efeito, o filho da “formosa sinhá-moça” EMÍLIA AMÁLIA PINTO MAGALHÃES, que escreveu, em pouco mais de dezesseis anos de produção, nada menos que 11 romances, 10 peças de teatro, um volume de contos, não contando artigos de jornal e poesias, – poesias ruins, pois a arte poética, “a mais condensada forma de expressão verbal”, não se ajusta à linguagem derramada e ornamental de Aluísio – foi artista fecundo mas apressado, que pintava jogando nas cores variadas e flamantes de sua criatividade, com grandes e enérgicas pinceladas, a realidade meticulosamente catada, sem que o impressionassem sutilezas técnicas ou estéticas. Do mestre naturalista preservo um quadro que não me canso de estimar, tal a vida que dele promana, a riqueza plástica de sua concepção. Vou atrair à vossa lúcida contemplação detalhe de o amanhecer no cortiço:

“Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por trás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se, já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda, ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra “.

Aluísio não ultrapassou os 56 anos, compreendidos entre 14.4.1875 e 21.1.1913. No Brasil de Pedro II celebrou 32 aniversários de nascimento; assistiu, maduro, à extinção da escravatura e ao advento da República, e morreu às vésperas da Grande Guerra. JOSÉ DE ALENCAR, JOAQUIM MANOEL DE MACEDO, JÚLIO ROBEIRO e RAUL POMPÉIA foram seus contemporâneos. “O Coronel Sangrado”, “Dom Casmurro”, “A Conquista” e “Recordações do Escrivão Isaias Caminha” surgiram em seu tempo. Não obstante a heroicidade da época em que existiu e o desafio dessa comtemporaneidade tão marcante, a obra de Aluísio Azevedo nos legou alcança até agora edições disputadas e, desde a publicação dos volumes iniciais, mereceu estudos de autorizados nomes de nossa história e crítica literária. Destrinçaram-lhe o naturalismo e romantismo dos livros, analisaram sua linguagem e limitações, pesquisaram as influências que recebeu, pesaram a contribuição que trouxe à literatura brasileira não apenas JOSÉ VERÍSSIMO e RAIMUNDO MENEZES, mas também, entre outros, TRISTÃO DE ARARIPE JÚNIOR, EUGÊNIO GOMES e HERMAN LIMA, BRITO BROCA e JOSUÉ MONTELO, ALCIDES MAYA, MARIA DE LOURDES TEIXEIRA, AGRIPINO GRIECO, RONALD DE CARVALHO, OLÍVIO MONTENEGRO, ÁLVARO LINS, ADONIAS FILHO e MASSAUD MOISÉS, sem contar LÚCIA MIGUEL PEREIRA que, na esplêndida introdução ao romance “Uma lágrima de mulher”, distribuído pela Livraria Martins Editora, escreveu síntese que abona o ligeiro desaponto com que reli a coleção aluisiana:

“Parece ter havido, em Aluísio Azevedo, uma condição essencial, que se poderá exprimir sucintamente dizendo que foi um naturalista com horror à realidade. O seu feitio independente, sempre em revolta contra o meio, devia levá-lo à literatura de evasão, mas a moda do tempo o impelia para a objetividade, e o real que assim se obrigava a buscar não o satisfazia, antes como que lhe repugnava, preso que ficara aos pormenores mais grosseiros. Essa incapacidade de ter uma visão mais ampla e generosa sem dúvida doutra anomalia de seu temperamento, de ser um criador sem dons poéticos. Basta abrir qualquer trecho em que se queira elevar acima do quotidiano, quer pela abstração, quer pelas descrições, para se ver como, perdendo contacto com o imediatamente próximo e tangível, cai na declamação. Até o seu estilo, límpido e fluente, sofre de uma certa opacidade, não tem vibração, não consegue sugerir nem prolongar emoções”.

Apesar de este e outros reparos, a literatura do meu patrono não morre nas estantes: é procurada, lida e debatida há quase um século! Um alongado tempo, espesso e inclemente, que sepultou nas traças do esquecimento verbi gratia o pioneiro INGLÊS DE SOUZA e o fértil COELHO NETO...

Quero, pois, avivados, em nosso espírito, os aplausos a Aluísio Azevedo, cognominado David, o Belo, lhe transmitiu caracteres de formosura que o escritor gosta de evidenciar em seus heróis. Raimundo possui “olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis”; Amâncio é moreno, “de cabelos crespos”, e Teobaldo com “olhos negros, pestanudos, boca fidalga e desdenhosa”, o mais bonito deles.

Quero também rememorada em Aluísio a freqüente ternura pela mãe que, infeliz no casamento, teve o desassombro de ir viver amasiada com o homem a quem verdadeiramente amava, deixando a população de São Luís do Maranhão de queixo caído, por muitos anos. Talvez esteja aí, nessa sua patente afeição pela mãe – mulher carinhosa, linda e de fibra, com reconhecimento traquejo literário – a razão pela qual Aloísio concebe de modo simpático várias mães de seus romances: Olímpia, odiosa sogra de Leandro, mas extraordinária protetora da felicidade de Palmira, sua filha; a mulher que gerou o desditoso Amâncio, essa resignada Ângela, “foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e os queixumes”. “Também” – é o próprio escritor quem declama – “só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, – brota, floreja e produções consolações. Neste não há chama que devora, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite”.

Laura, a doce genitora de Teobaldo, apelidade Santa, logrou ser, por um instante, mãe que o Coruja perdera aos quatro anos, quando ela o beijava na testa, ao se conhecerem. E Da. Isabel, no cortiço, veste de ridicularia e encanto a solicitude materna, quando padece a se alvoroça ante a retardança e o advento de as regras inaugurais de Pombinha. Até que em sua cegueira pelo sucesso da filha, não entende que a rapariga Léonie estava esculpindo na virgindade de sua menina-moça a própria libidinagem.

Em Aluísio, vida e obra se confundem, se afinam a tal ponto que um de seus biógrafos lhe equipara a existência de um romance. Moço pobre, caixeiro, pintor, funcionário público, boêmio... Nos armazéns, apanhou a lida do balcão que transpõe para memoráveis páginas com o realismo dos cheiros e dos ruídos, da azáfama e da ganância; da pintura extraiu o grandioso, aprendeu a reprodução exata dos modelos, seja um cortiço, a cada de pensão ou um mulato. Filho de diplomata, a carreira paterna, que atinge depois de muita canseira em busca da atividade estável que o desfizesse da obrigação de compor folhetins para sobreviver, lhe foi adversa: Vigo, Iokoama, La Plata, Salto Oriental, Cardiff, Napoles, Assunção e Buenos Aires configuram, com breves dias de ventura e animação, a nostalgia, saudades, solidão, o enfaro de os serviços burocráticos, desterro, um rosário de queixas, o infortúnio constante cujo epílogo é mesmo morte. É bem verdade que antes dela lhe veio a eleição para a Academia Brasileira de Letras, mas também lhe aconteceu a impossibilidade de continuar escrevendo. Longe da terra e da contemplação de seu povo, o maranhense inquieto não pode mais escolher pincéis, armar a tela, liberar tintas, elaborar grandes murais, reviver esses espetáculos humanos em que o povo se instala no primeiro plano com todas as suas alternativas de encarar o mundo, nem sempre enfadonho e pesado. Custa muito aceitar essa defecção! O jornalista irreverente e polêmico, o caricaturista vitorioso, por que esmaecem no exterior? Por que o romancista e mesmo o mau poeta se emudecem no vice-cônsul? E Aluísio dispunha de tudo para ater-se à literatura que já lhe atribuira fama, meio de vida, a imortalidade. Granjeara a tranqüilidade de vencimentos certos, embora os julgasse parcos. Sua sensibilidade para o amor e a aventura, que aflorava onde houvesse mulher cativante e situações divertidas, podia atualizar-se em qualquer parte. Não é difícil descobrir aquelas suas condições essenciais: basta querer...

Contudo, o esgotamento se efetiva, a criação literária desaparece, o escritor maranhense vira página do passado: a morte toca-lhe mais cedo às letras que à vida. É certo que no coração já lhe pesavam mortos sua querida mãe e o abnegado mano Arthur...

A propósito, quando lhe faleceu a mãe, no Maranhão – é RAIMUNDO MENEZES quem o conta – BILAC, MURAT, COELHO NETO, GUIMARÃES PASSOS, PARDAL MALLET e PAULA NEI ao visitá-lo, o encontraram arrasado, com os olhos vermelhos de tanto chorar. A turma se compadece. Mas, “o romancista, além de outras preocupações, está a braços com a do luto, impossível na ocasião pela absoluta falta de dinheiro. A única roupa que possui é um terno cinzento, absolutamente inútil em tal emergência.

Guimarães Passos havia aportado, porém, recentemente de Alagoas, e é dono de um terno preto, destinado a grandes cerimônias. Corre à casa, e volta com a fatiota, para emprestar ao amigo, enquanto este arranja outro.

Passa-se, entretanto, o primeiro mês. Passa-se o segundo. Passa o terceiro, e Aluísio não devolve o terno preto, em que se mete diariamente. Guimarães Passos não suporta mais a demora; planta-se, uma tarde, à Rua do Ouvidor, ao lado de Coelho Neto e Alcindo Guanabara, e, à passagem do autor de “O Mulato”, que vem com a roupa emprestada, chama-o:

_ Aluísio!

E fazendo-o parar, intimativo:

_ É preciso que alivies o luto!...

Quem o alheio veste, na praça o despe. No outro dia, o romancista aparece com o seu surrado terno cinzento e um fumo no braço”.

Prosseguir, ainda, seria afoiteza e abuso. Não pretendo cometê-los contra auditório tão compreensivo e nobre. Mas o invoco, Senhores Acadêmicos, como testemunha do compromisso, que assumo, de retribuir quotidianamente, pelo trabalho e pela unção, a honra deste instante.

TALISMÃ NO MAR DAS SEREIAS

(Discurso de recepção do escritor Ursulino Leão na Academia Brasiliense de Letras)
Waldemar Lopes

Vem receber-vos, Senhor Ursulino Leão, no limiar desta Casa, votada aos interesses das letras e da cultura, quem poderia ser também – como vos dissestes – fazendeiro, por amor ao verde e à quietude; mas, preferiu arar os chãos do azul , pela exagerada confiança na seiva do sonho. Escutai, pois, a voz fraterna: já não vos cabe repetir a “confissão do abandono”. Se vos faltou, por vezes, a bravura interior para fugir ao chamamento aliciante das sereias desviadoras – a advocacia e a política –, haveis de convir em que esta segunda láurea acadêmica representa, para vossa incoercível vocação literária, um talismã premonitório, um signo de redenção. Podeis ajustar, assim, as esporas de estrela, para a cavalgada ideal pelos campos da imaginação criadora.

O PASSADO DE GOIÁS

Considero um grato privilégio a alegria intelectual de transmitir-vos, nesta noite, a saudação da Academia Brasiliense de Letras. Vindes de um Estado a que me acho sentimentalmente ligado, seja pela simpatia com que, no exercício de funções públicas, acompanhei seu esforço para quebrar as cadeias do subdesenvolvimento, seja pelas boas lembranças que me ficaram da íntima participação, com tantos outros brasileiros de diferentes regiões do País, naquela memorável festa de inteligência e emoção que foi, há trinta e três anos. O Batismo Cultural de Goiânia.

Guardo viva na memória do amável convívio com as figuras da “élite” intelectual de vosso Estado, naquela época – algumas ainda hoje meus amigos, outras mais cedo colhidas pela asa da morte; das ruas recém-traçadas de vossa jovem Capital, no alongado colorido de sua terra vermelha; das noites amplas, estreladas e frias, sob os céus generosos do Planalto; da alegre casa da Rua 20, onde agora está a Faculdade de Direito de Goiás, cedida por Pedro Ludovico para hospedagem de quatro casais ligados, ao longo da vida, pelos mesmos vínculos de afeição; e, sobretudo, da confiança e entusiasmo com que se antevia, três décadas atrás, o que haveria de ser, pelo trabalho construtivo, pelo ímpeto realizador das novas gerações, a dinâmica, simpática e acolhedora Goiânia dos nossos dias.

Em Goiás, seduziu-me sempre a extrema pureza do espírito brasileiro, em sua primitiva autenticidade. Será, talvez, uma das características sociológicas das áreas culturais mediterrâneas. Nelas se preservam melhor a genuidade dos costumes, as linhas do comportamento social, os valores lingüísticos arcaicos, os mitos populares, a própria filosofia da criatura humana, em face da vida, do destino da morte. Essas peculiaridades se acentuam, sobretudo, num País como o Brasil, do qual se disse – antes de Goiânia e Brasília – que, pela variedade de seus segmentos etnográficos, em diferentes graus de evolução, a caminhada no espaço geográfico se confundia com a reversão no tempo. Avançar, interior adentro, pelas grandes áreas do Centro-Oeste, equivaleria, assim, ao reingresso progressivo nos primeiros séculos da conquista e do povoamento.

No caso específico de Goiás, parte mais central do Brasil, o fenômeno indicado adquire características ainda mais fascinantes. Por uma curiosa predestinação histórica, o próprio topônimo estadual já traz em si, dentro do poder de concisão expressiva do idioma tupi, conotações de afinidade e confraternização: “guaiá – o indivíduo parecido, gente da mesma raça”. Além do mais, as condições da ocupação do território, sob a atração do ouro, conferiram a Goiás traços singulares, na contextura nacional.

Fez-me aquela ocupação mediante a convergência de elementos humanos de todo o ecúmeno brasileiro, – amálgama sugestivo das mais diversas correntes demográficas, em termos de integração cultural. Daí resultaram a multiplicidade e riqueza dos contatos antropológicos; a vitalidade das forças periféricas, obrigadas a afirmar-se para não perecer, e que, por todo o País, tanta influência exerceram nas fases iniciais de nosso processo histórico-social; a lenta consolidação do material lingüístico, a valorizar-se e enriquecer-se na medida em que sua base estática recebe as múltiplas contribuições de uma cultura dinâmica, em permanente devir.

AS pessoas menos atentas aos fatores e condições do processo de formação do Brasil, receberão, decerto, com espanto o registro de que, apesar do “atraso com que chegavam a Goiás literárias dos grandes centros culturais” – conforme anotou Gilberto Mendonça Teles – tão significativos empreendimentos, no plano da cultura, viessem a contrapor-se à pressão negativa do isolamento geográfico: “a instrução primária, iniciada em 1788 nas cidades de Goiás, Pirenópolis e Pilar de Goiás, ao mesmo tempo que, nas duas primeiras, surgem também os primeiros professores de Latim e Retórica, isto é, de Língua Portuguesa; o jornalismo, que, desde 1830, quando apareceu a Matutina Meiapontense, vem desenvolvendo-se através de jornais de vida efêmera, mas que não deixaram de contribuir para que, já em 1869, data em que surgiu A Província Literária, sob a direção de Felix de Bulhões, constituísse o gênero “literário” dominante; a criação de uma biblioteca pública em 1850, na capital da Província, depois de já existir uma em Pirenópolis, numa rivalização intelectual que só não continua nos dias atuais devido à ação centrífuga e cultural de Goiânia na zona central do Estado; a criação do Liceu de Goiás em 1847; a fundação do Gabinete Literário Goiano em 1864; a importância humanística do Seminário Santa Cruz, fundado em 1873 e responsável pela formação intelectual dos primeiros homens públicos e dos primeiros escritores; e, já no século vinte, o aparecimento da Academia de Direito em 1903 e da Academia de Letras, em 1904”.

O LOUVOR DA PALAVRA

É dentro desse contexto histórico-cultural que se explica a presença de Goiás, nos fins do século dezoito, para ensinar Gramática Latina, daquele que, segundo alguns historiadores, foi o primeiro poeta goiano. Bartolomeu Antonio Cordovil, a cantar na Pirenópolis de quase dois séculos atrás, então Meia-Ponte, seu ditirambo a ninfas imaginárias. Ou, ainda, outra presença não menos expressiva, na última década do século passado e primeira deste século, de um poeta da categoria de Manoel Lopes de Carvalho Ramos, que trouxe de sua Bahia a flama da inspiração condoreira, haurida, como no caso de Castro Alves, nas fontes românticas de Victor Hugo, para que dela impregnasse o seu poema épico Goiânia, escrito em 1896, sob clara influência camoniana.

Não deixarei de refletir também – e acrescentaria: num preito de homenagem e recolhimento – a extraordinária figura de trabalhador intelectual, professor de Matemática e Geografia, que foi Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Causa surpresa e emoção que, em sua plácida Vila Boa de Goiás, onde certamente escasseavam estímulos e recursos para iniciativa tão ambiciosa, lhe fosse possível realizar uma obra da significação e amplitude do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, ponto culminante no conjunto de sua produção literária e científica, e, ainda, verdadeiro monumento à glória d função da palavra.

É, por isso mesmo, inestimável a dívida de todos nós que temos no verbo gramaticamente materializado, em seus valores mágicos e lógicos, o instrumento de nosso rude ofício, para com aquele que, num esforço gigantesco de pesquisa, sistematização e ordenamento, nos pôs ao alcance de fácil consulta as múltiplas conotações, sutilezas e mudanças dos recursos vocabulares, em “estado de dicionário”. Senhor desses recursos é que vive o escritor o íntimo conflito da escolha em face da página em branco, para a construção de seu reino encantado de símbolos, metáforas e alegorias.

E não será nunca um autêntico homem de letras quem não tiver pela palavra respeito quase místico; quem nela não identificar a ferramenta básica de seu trabalho de criação. Neruda ante elas se prosterna, pressentindo com reverente humildade “lãs que cantan, lãs que suben e bajan...” E eis que, ante seus olhos ungidos de poesia, elas “brilhan como piedras de colores, saltan como platinados peces, son espuma, hilo, metal, rocío...” “Todo está en la palabra... Uma Idea entera se cambia porque una palabra se trasiadó de sitio, o porque outra se sentó como una reinita adentro de una frase que no la esperaba y que le obedeció... Tienem sombra, transparência, peso, plumas, pelos, tienen de todo lo que se les fue agregando de tanto rodar por el rio, de tanto transmigrar de patria, de tanto ser raíces... Son antiquísimas y recientísimas... Viven en el féretro escondido y en la flor apenas comenzada...”

Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, com o dicionário de idéias afins, que não chegou a ser publicado valoriza o poder encantatório da palavra, em toda a sua dimensão e densidade, e lega aos escritores brasileiros um material lexicográfico que, favorecendo a clareza e precisão da escrita, como fonte de consulta e instrumental de trabalho, é também elemento coadjuvante, sob o mistério da inspiração demiúrgica, na eclosão do ato criador.

Vê-se que, apesar dos fatores geográficos desfavoráveis, pelas dificuldades impostas ao relacionamento e intercâmbio com os centros literários mais avançados, Goiás sempre deu provas de atividade intelectual, e soube imprimir às realizações de seus poetas e escritores as marcas de um processo histórico em que o sentimento de Brasil é um compromisso permanente. Com esses antecedentes ilustres, não surpreende a força vital da literatura goiana de nossos dias, em cujos quadros, Senhor Ursulino Leão, ocupais lugar merecido relevo.

O ROMANCISTA

É curioso assinalar que, no roteiro de vossas produções literárias, invertestes a evolução natural verificada na obra de outros autores, com o trânsito incomum do romance para o conto, e não deste para aquele. Mais freqüente é fazer da história curta uma espécie de exercício intelectual, de revigoramento dos músculos da criação, para, depois, dominar os espaços mais amplos do romance. Em vosso caso, houve a inversão desse itinerário habitual no processo criador. Duas razões poder-se-iam invocar, para explicar a singularidade.

Note-se, antes de tudo, que o Maya é o único de vossos livros escrito longe das impregnações sentimentais e da influência inspiradora do ambiente goiano. Romance “à clef”, aparentemente, representa, sem dúvida, o primeiro choque de vosso idealismo com as contingências dos relacionamentos humanos. Marca, também, a vossa surpresa e desencanto em face de um contexto cultural que tão fundo violentava o patrimônio de lembranças, legado de vivencias anteriores em Crixás e Anápolis. É, por isso, tipicamente, um romance de desencontros. Mas é, por igual, um largo painel, talvez ainda um tanto assimétrico, das inquietudes e aspirações de vossa geração, no período de após-guerra, de tão fecundas indagações no pensamento brasileiro.

E é sintomático que os episódios derradeiros da urdidura ficcional correspondam precisamente a um ato de retorno do narrador, no sentido geográfico e psicológico. Não seria bem “a infância de outra vida”. Antes, o reencontro com as forças telúricas de sua formação, a viagem de regresso para dentro de si mesmo. Tudo esmaecia, diluído no tempo, ante a decisão da volta, e conseqüente reintegração nos valores essenciais de realidades mais íntimas. Daí o registro melancólico: “Interessante. Como as coisas mudam de repente! Naquele momento, seguindo para o meu embarque, Maria do Rosário e Hermano não passavam de criaturas comuns que encontrara fortuitamente. Sem nenhum significado. Dessas pessoas cuja estrada se alonga em direção contrária ao que demandamos. Mas, como me fizeram sofrer até então! Como me haviam tornado pusilânime!”.

Já observava Álvaro Lins, com a sua aguda sensibilidade crítica, que “no romance é que se pode ver bem a grandeza que existe na ilogicidade dos atos e fatos humanos”. Também a vida é uma aventura de desencontros. Ou o “romance sem fim” a que aludia Maritain.

O CONTISTA

Outra aparente razão para que, estrelando como romancista na juventude, viésseis a ser, na maturidade, antes o contista, reside na evidente predominância do conto, como gênero literário, na ficção goiana, desde as tímidas experiências da última década do século passado, até a brilhante afirmação de tantos valores atuais, como um Bernardo Elis, um José Veiga, um Bariani Ortêncio, um Carmo Bernardes, um Alaor Barbosa, um Miguel Jorge, e tantos outros.

Entre os mortos, nenhum supera Hugo de Carvalho Ramos, cuja presença no ficcionismo brasileiro cumpre realçar, além de tudo, pelo sentido de antecipação daquelas “intenções denunciadoras”, anotadas por Lúcia Miguel Pereira, a partir do momento em que “a sorte das criaturas” passa a predominar sobre “a cor local” e a nota exótica.

O progresso social, a lenta e gradativa implantação da justiça na cidade dos homens, muito deve à capacidade de denúncia e revolta dos criadores, no mundo da ficção. Sem o seu testemunho e o seu protesto, bem mais retardado seria o acordar da consciência do mundo, em face das injustiças e desigualdades sociais. Hugo de Carvalho Ramos inscreve-se, com a sua prosa rica de colorido, mas também atenta a essas injustiças e desigualdades, entre os que fazem da literatura um instrumento de consciência crítica da sociedade. Esse é ainda o caso de Bernardo Élis – em quem facilmente se identifica uma honrosa linha de continuidade com o criador de Tropas e Boiadas, em nível de cumiada, na cadeia de montanhas de literatura goiana.

Como se explicaria a tendência, assinalada em alguns escritores de Goiás, não para alongar o conto em romance, mas, sim, para desdobrar seus romances em contos?

Já se demonstrou, em numerosos estudos, no campo da teoria literária, a inexistência de leis específicas para a caracterização do “conto”, como gênero autônomo. Nosso companheiro Domingos Carvalho da Silva, em arguto ensaio sobre o problema, ressalta “a disseminada incerteza quanto aos limites e atributos de tal tipo de composição literária e as dificuldades de defini-lo e até de conceituá-lo”, e chega à conclusão de que e teoria se mostra incapaz “de explicar o que é um conto”.

Apesar da inexistência de leis específicas, para caracterizar o gênero da história curta, há, nele, alguns valores típicos que o dissociam substancialmente, na técnica estrutural e nas marcações de tempo, da novela e do romance. Talvez precisamente aquelas virtudes que, em termos de tensão emocional, mas o aproximam do drama que da narração romanesca.

Os vícios do romantismo – assinala Mário da Silva Brito – estimularam o florescimento de uma forma narrativa caracterizada pela “prolividade, a eloqüência, o excesso de imaginação, a fantasia, o sentimentalismo, as expansões derramadas, a exuberância de emoções e de linguagem”. Mas – ressalta –, no caso do Brasil, “o conto assumiria a sua estrutura de contenção e sobriedade, muito tempo depois, com Machado de Assis, cujas produções iniciais, se bem que quase sempre superiores à de seus predecessores, ainda estão eivadas dos vícios da escola, e desbordam dos limites que o gênero exige”.

Nos últimos tempos, entretanto, a bem dizer por toda parte, a tendência do conto moderno caracteriza-se pela prospecção intimista, pela caracterização psicológica, talvez como fórmula de reação às influências desumanizantes da era tecnológica. Vai-se perdendo em amplitude horizontal o que se ganha em verticalidade, concentrada numa visão abrangente da essência do ser, apreendida em suas camadas mais íntimas e profundas. O testemunho social, sim, mas, sobretudo o mergulho nas obscurezas da criatura. O exotismo, de paisagem ou de linguagem, já não se impõe, dominador, como fonte de inspiração; antes, como valor subjacente, e a que pouco se recorre. A par disso, a consciência artesanal vigilante, de que resulta, muitas vezes, outra realidade ficcional, tendente não só à busca introspectiva, mas também à fusão, na estrutura do conto, do sociológico e do estético. Não se conclua daí pelo total desaparecimento das sugestões telúricas. Na maioria dos casos elas continuam vivas e atuantes. José Veiga, por exemplo, conforme anota Hélio Pólvora, “envereda pela inspiração fantástica, supar-real, mas tendo sempre como ponto de referência o Planalto goiano”.

Em vosso caso, Senhor Ursulino Leão, vê-se que, transitando do romance para o conto, apenas cedestes aos impulsos de vossa intuição artística, em termos de sobriedade e concisão verbal. É que vosso processo narrativo distingue-se precisamente por esse refinamento da consciência técnico-artesanal, em proveito da densidade dramática e da valorização dos recursos expressivos. Logo, é o conto a forma natural e espontânea em que exercitais a capacidade de criação.

A matriz de vossa consciência literária, vós próprio a indicastes, como formulação de doutrina estética, ao afirmar, em certo passo de vosso discurso: “A verdade é que, mais leitor que escritor, menos estudioso das letras que um namorado delas, sou machadiano no gosto literário e ouso procurar no escrito a construção artística, a frase elaborada, os caminhos mal divisados, o debuxo, a sutileza psicológica, o fluxo e refluxo das almas; na paisagem o que me convence é o homem”.

A esta altura de vossa obra, a parte final dessa asretiva perde o caráter de simples postulado, em que se admitiria o reconhecimento do princípio não demonstrado, para impor-se como realidade tangível e comprovada a quem de detenha na apreciação crítica de vossa contribuição – certamente, ainda pequena em quantidade, mas que sobreleva em importância, atenda sua qualidade – na moderna ficção de Goiás.

Poderia considerar, nesta breve análise, também os contos que compõem o vosso próximo livro, lido no original e em via de publicação. Ater-me-ei, entretanto, apenas ao Existência de Marina, que data de 1968, mas em que já se afirma, com absoluta nitidez, a dimensão de vossa presença no moderno panorama do conto goiano.

Vossa maneira de ser regionalista subordina-se à intenção de fazer do homem o centro e o limite de tudo. A luz desse pressuposto, o conflito das situações, na trama do enredo, tende a resolver-se sempre mediante o predomínio da síntese psicológica, pela superposição do humano ao regional. Em verdade, bem o dissestes: “na paisagem, o que me convence, é o homem”. Poder-se-ia acrescentar: só pelo regional se atinge o universal.

Veja-se, por exemplo, um dos mais bem construídos, mais rico em potencialidades sugestivas, dos contos reunidos e, Existência de Marina: “Jogo do bicho”. Há, nele, a transmutação numa peça antológica, através da recriação artística, de mera cena de botequim, vinculada às esperanças lúdicas que modelam uma das facetas da psicologia social brasileira. É uma história de bar, vivida por motorneiros e condutores de bonde. Tudo gira em torno da vaga confiança na “roleta da vida”. Seres humildes, vencidos, sem nenhuma perspectiva real da ascensão na sociedade, contam ainda “lavar a égua” na centena ou milhar, com a complicada decifração de seus sonhos simbólicos.

Observem-se porem, a humana fragilidade, o desamparo moral, a fria conformação com o destino presentes nas almas simples daqueles homens, tão naturais e espontâneos nas manifestações de seu caráter em véu nem mistério; sua profunda aceitação da vida, como quer que se apresente:
__ Minha mulher não me respeita, Negrão. Quando sonhar comigo, jogue no marido da galinha ou em qualquer outro bicho de chifre.

São de assinalar-se, ainda, no conto examinado, a capacidade de registro do coloquial urbano brasileiro, a autenticidade do dialogo, e, a par disso, o gosto de inusitadas formas de dizer, nas partes de responsabilidade direta do autor, como nesse insólito emprego do verbo desunir: “Antônio Faísca nunca se desune da pasta marrom sem fechadura e do chapéu preto nº 54”.

A imprevista conotação do verbo, completada com a indicação do número, 54, nos transmite, tem termos quase físicos, a idéia do mútuo apego, da estreita vinculação, da intrínseca interdependência do homem, sua pasta e seu chapéu. A partir daí, já não conseguimos visualizar o primeiro sem a presença íntima, constante, de uma e de outro.

Fora de dúvida, o material etnográfico está subjacente em vosso processo de criação. Nunca, entretanto, em primeiro plano. Preferis, isto sim, subordiná-lo à contenção dramática, à insinuação sutil, ao antes sugerido que explicitado, até que o enredo se resolva pela dinâmica do corte imprevisto e radical. “Marina não tem sexo mesmo. Mas, os vossos filhos são os mais bonitos da vila”.

Em vossas mão hábeis de escritor, com perfeito domínio de seus recursos de composição literária, a matéria ficcional ganha relevos de densidade subjetiva, numa constante reação à tendência ao fluxo linear da narrativa. Só, na verdade, uma legítima vocação de mestre da escrita, consciente das potencialidades de seus agentes expressionais, pode compor uma página carregada de tantos significados e tão clara em sua desnuda beleza, como aquela com que encerrastes, em Existência de Marina, o conto “O cofre”:

“Medo de gente, acho, sei certo que ele tinha. Aliás, em mim também gente mete medo, em coração de ninguém eu confio, da cabeça das pessoas sai mais coisa ruim do que tudo. Medo de gente, ele gostava da solidão. Viajar sozinho, de dia ou de noite, comer sozinho, conversar consigo mesmo, o silêncio, o mutismo das coisas, das areias, do sol, das noites sem lua. A solidão é fértil, a solidão é leve, a solidão é heróica, a solidão é suntuosa. Da solidão nascem as estrelas, a solidão gera os sonhos. Pranto autêntico é o pranto solitário, pranto que lava, que refresca, que cura. Igreja de verdade, pra mim, quando não tem ninguém nela e a luz do sacrário está lá no fundo, exprimindo presença, água fresca, sopa quente, olhar de imagem, vento ns folhas, planta brotando, fruto se oferecendo no pé, solidão meu tesouro, meu túmulo.

“Um túmulo é como um cofre. Nos cofres, portanto, puluvam os vermes, que nos mortos constroem o meio de viver? Mas não neste cofre, que vigio, que fito toda hora, sem poder levar ao botão giratório a combinação que sei de cor, número na direção e nas voltas estabelecidas: comece quando aparecer o primeiro fio de luz na sexta madrugada, gire os furos horários partindo da Atlântida desaparecida, três vezes, e quando a pedra do sepulcro for arredada pelo assombro de onze mil dominações, a porta do cofre está aberta e jamais se fechará. Como não se fecham as gueiras do Inferno”.

O CRONISTA

Já no Livro de Ana é a crônica o instrumento de vossa expressão literária. Sabe-se a amplitude que o gênero, ainda mal caracterizado em seus limites conceptuais, adquiriu ao longo do tempo, valorizando entre nós até como elemento fixador, não só das miúdas realidades sociais, senão também, em cada época, da própria linguagem comum, ou das peculiaridades da fala brasileira. São numerosos os testemunhos a esse respeito, mas, seguramente, o prestígio maior da crônica, em nossos dias, resulta da importância adquirida pela comunicação na sociedade de massa.

Por força de sua própria indefinição, como gênero literário, ela comporta os mais diferentes matizes, segundo o gosto pessoal de quantos a cultivem. Para Fernando Sabino, “crônica é um gênero não definido, às vezes evasão, mera expressão memorialista ou reminiscente”. Eduardo Portela, por sua vez, admite que a “crônica hoje se enriqueceu dessa nova função: é elemento de contato entre a ânsia quantitativa da massa e a necessidade de evitar-se o desnível qualitativo da informação. Mas, toda cultura caudatária dos ”mass media” compromete-se inevitavelmente com um auditório heterogêneo e se entrega passivamente às decisões soberanas das médias de gosto. O que vale dizer que a capacidade criadora individual se vê submetida a forças externas, que a entorpecem e anulam”.

Em vossa obra, porém, Senhor Ursulino Leão, a crônica elaboradora sob a pressão imediata do acontecimento, ou sob as sugestões da lembrança, e só recolhida em livro após a divulgação jornalística, assume sentido diferente, em função da própria multiplicidade temática. Pode ser evocação sentimental do que o tempo fixou nas camadas da memória sensível, mas é também registro vivo das realidades político-administrativas e sociais de vosso burgo anapolino, um corte vertical, diria, no momento histórico em que sobre ele incidiu a vossa arguta visão de escritor, de homem público, de memorialista. Daí a gama de temas e assuntos presentes no Livro de Ana. A literatura social brasileira necessita de contribuições dessa natureza, adstritas e pequenas áreas geográficas e políticas – uma vila, uma cidade, uma região –, como subsídios ao entendimento mais íntimo e profundo do grande complexo tão nitidamente influenciado, no caso do Brasil, múltiplo e uno a um só tempo, pela riqueza, colorido e variedade de seus expressivos mosaicos heterogêneos; mosaicos que, ajustados em sua tessitura inconsútil, modelam a trama unitária de uma única realidade – o espírito nacional.

Por isso, o vosso livro de crônicas é um documento válido de nossa psicologia social, dada a capacidade que nele revelais de, através da fixação literária, eternizar o efêmero – o que se proteja, sobre a face do tempo, no ritmo veloz da constante mutação. Nele está presente, em corpo e alma, uma cidade brasileira – a vossa Anápolis –, detectada no fluir do dia-a-dia, com suas figuras características, suas gradativas mudanças de comportamento coletivo, seus valores folclóricos, sua evolução econômica, seus problemas ecológicos e culturais, seus hábitos de convivência, sua gama de relações; em síntese – sua forma de ser, no contexto brasileiro.

Isso é, sem dúvida, história social; isso é registro de vivências, documentário a que, de futuro, se poderá recorrer, para a reconstituição do estilo de vida de um núcleo urbano do interior do Brasil, na segunda metade deste século.

Mas, perpassa também nas páginas do Livro de Ana certo sopro lírico, em que tão vívida se manifesta a sensibilidade do poeta que nunca deixastes de ser. Como, por exemplo, naquela amarga anotação de margem de estrada, sobre o mais terrível e despojado anonimato, à sombra da morte: “São tristes, os silenciosos cemitérios que se levantam à beira dos caminhos, nos sertões goianos. (...) Cruzes toscas, lavradas de facão. Ora grandes, ora pequenas. (...) Os braços, nus. Sem qualquer nome, sem nenhuma data”. Isto nos lembra, em sua pungente realidade, “A morte absoluta” do grande poeta de Estrela da vida inteira:

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.

Não menos tocante aquela comovida evocação do Município onde nasceste, a pátria menor, e tão viva e presente sempre na memória e no coração de cada um de nós:

“Crixás não chega a ser nada, com as suas casas tristes, suas noites sem cabaré, seus campos sem estradas, sua canícula, seu inverno do mês inteiro – sua laranja melhor do mundo! Mas o homem o ama e o menino sabe colher, aqui e acolá, a sua perdida grandeza! Pelos sertanejos angulosos, tão humanamente depurados, alcança a ousada estirpe de bandeirantes que lanhou aquelas terras buscando ouro e poder. Os velhos altares, que cheiram a mofo a aninham morcegos, se lhe fazem de novena festiva: com o incenso, a fé, os cânticos daquela gente construtora de tempos heróicos, brava e simples. O baticum do pouso de folia lhe revela as sensações do esforço negro, criando igrejas e muros. A mulata, a umbanda e todos os medos! A sanfona trêfega, na madrugada que cem galos anunciam, é festa do Divino. Com o imperador, a mesa de doces, a pompa dos foliões! Com os milagres que o Santo fez, confirmados em cera e muletas na penumbrosa sacristia”.

Aliás, Sr. Ursulino Leão, a vossa fidelidade aos elementos fundamentais da cultura goiana, que bem expressastes na oração de posse, ao dizer que sentis ao pé de vós as forças de vossa gente, em “sua vocação para participar e servir”, não se manifesta apenas nas límpidas diretrizes de vossa vida pública. Também está presente na identificação de vossa personalidade com os valores mais puros e ingênuos da alma do povo, como no episódio da Festa do Divino, de que fostes o personagem principal, em Crixás, e que Regina Lacerda anotou em seu Papa-Ceia:

Bate o Tambor,
Tamboreiro,
Que o Imperador
Tem dinheiro.

Sabemos todos, por sinal, que manifestações idênticas, em relação a bens materiais, como a exprimir interesse e inveja, são encontradiças nas tradições folclóricas brasileiras. Assinale-se, por exemplo, a coincidência de sentido entre os versos citados, ouvidos num município do Planalto Central, e alguns daqueles outros que Sylvio Romero já havia recolhido nos Cantos Populares e Pereira da Costa ampliou, com a juntada de novas contribuições, para seu Folk-Lore Pernambucano, como parte do drama pastoril do Bumba-meu-boi:

Cavalo marinho
Dança no terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo marinho
Dança na calçada,
Que o dono da casa
Tem galinha assada.
Cavalo marinho
Dança no tijolo,
Que o dono da casa
Tem cordão de ouro.

O ACADÊMICO

Está ainda por escrever-se o Guia do Perfeito acadêmico. Seguramente, a concepção do “homem cordial”, a que se procurou vincular a imagem típica do brasileiro, entraria como uma das componentes desse modelo, por enquanto ainda indefinido. Ao acercar-se pela segunda vez, e já então certo de que lhe seria aberta, da porta da imortalidade, o grande escritor que foi Gilberto Amado ainda manifestava dúvida, até certo ponto justificada, se seria, ou não, “academizável”. O convívio acadêmico tem sutilezas e singularidades. Isso explica, muitas vezes, porque não basta, como passe livre à ilustre Companhia, o simples merecimento literário, o valor da obra realizada, a própria consagração da glória pública. E talvez justifique porque, um pouco à maneira do que está nos Evangelhos, tantos sejam os que se oferecem, e tão poucos os aceitos.

Em vosso caso, porem Senhor Ursulino leão , pode-se afirmar que nada vos falta para o talhe justo do acadêmico perfeito. Alem dos méritos indiscutíveis , de que destes provas em vossa atuação na vida publica e em vossas criações literárias , sois um temperamento com o gosto da convivência afetiva na comunidade dos homens de letras, sempre inclinando a compreender e louvar, coma tendência inata ao bom entendimento e a conciliação . Essas virtudes de vossa figura humana já as vindes praticando, alias, com segurança e brilho, na presidência da Academia Goiana de letras, e delas dão testemunhos aos vossos confrades de diferentes pontos do País, que ainda recordam a vigorosa liderança , o “saivor faire” ,o equilíbrio com que presidistes, nos idos 72, o primeiro encontro em Goiás das Academias de Letras do Brasil.

CONCLUSAO

Numa instituição como a nossa, não sois, não sereis nunca, em estranho, um intruso, um adversário contrario. Nela podeis entrar sem bater palmas nem pedir licença, como, no céu, a Irene de Manuel Bandeira. Daí o sentimento de fraterna camaradagem e de intimo regozijo com que vos dou as boas-vindas nesta noite festiva de confirmação da vossa imortalidade, em nome da todos os nossos companheiros da Academia Brasiliense de Letras.

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