sábado, 17 de abril de 2010
URSULINO LEÃO: Discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras
Posse ocorrida a 6 de março de 1975, no auditório do Palácio do Buriti, em Brasília.
Discurso do Acadêmico Ursulino Leão:
Nasci nas terras anhangüerinas de Crixás, sob atmosfera e feitiço e ouro extinto, à beira de um rio também chamado Vermelho. Mas o sangue e a carne em que vivo, eu os trouxe de fontes maranhenses: uma de intrepidez e descortino; a outra que se esgotou mais cedo, era de sensibilidade e fé.
Razões me sobram, pois, para sentir, nesta minha posse na Academia Brasiliense de Letras, e emoção singular.
De fato: goiano, vim certa vez ai planalto nas calças minúsculas da infância, dormi à beira do Torto, vi distâncias, apalpei solidões, presenciei estrelas regarem, com luz de sabedoria e bênçãos, a terra predestinada. Depois, homem, cruzei, recruzei, multicruzei os sítios reservados, imaginando que a ordenação constitucional da mudança, transfigurada em casas e homens, ruas e automóveis, trabalho, expansão e partilha, jamais surgiria naqueles ermos de poentes raros, de campinas tranqüilas, de águas puras e longas, abundantes e mansas.
Mas vieram os acontecimentos. E as dúvidas foram se convertendo em máquinas que assombravam os silêncios e enfrentavam o dia e as trevas com a força-fúria progressista de seus roncos. Na incredulidade de muitos e nas desesperanças de alguns nasceram as flores da certeza, da participação, do entusiasmo: que são flores de verdade capazes de permanecer anos e anos na alma dos homens sem que se lhes murche uma só pétala.
No vazio que o vento e a chuva disputavam correndo, braços ofertantes, inúmeros, de mulheres também, começam a trançar o esforço com a alegria, trabalho com prazer e a misturar suor com sonhos e sonhos com terraplenagem, sondas e concreto, para edificar, como edificaram, a cidade cuja planta é um vôo.
E a construíram, pragmática e bela, adejante e sólida. Aprontaram-na com a colaboração de todo o Brasil e para as necessidades totais da Pátria.
Então passaram a chegar os esperados Poderes, a fim de se alterem, no chão de meu Estado, às dimensões de grandeza que o povo lhes exigia, argumentando com silogismos que a região oferta: os céus possuem cores exclusivas, os chapadões convidam a marchas e conquistas, as lonjuras se diluem na eqüidistância, os astros noturnos estão próximos e seu brilho adverte e ensina. Assim, o homem e suas instituições logo percebem que o lugar convoca o saber. Pede estradas de integração, aclara os objetivos nacionais, de liderança e ação, ordem e segurança, amor e paz. Que o sítio convém à morada da poesia.
Fincou-se o Executivo em nome de alvas permanentes a abriu à administração pública canais ágeis por onde hoje se desloca o fluxo revolucionário, que arrasta às fronteiras e às carências soluções ricas de planejamento e coragem.
O Legislativo armou residência sob uma concha lançada para o firmamento, perenemente, simbolizando que a Liberdade, “noiva do sol”, é aspiração comum dos que a habitam e onde outra concha, voltada para a terra, anuncia que a segurança da nação vem do povo que a forjou e só se efetiva em desenvolvimento integral se ao lado dela mora a Liberdade.
O Judiciário, guardião desarmado da lei, recolhido na praça que lhe foi consignada, observa que a cidade amacia ruídos e anestesia inquietações para que as árduas horas de cumprimento da sua excelsa missão perfaçam, com suma justiça, o monumento imperecível dos julgamentos.
E agora, aí está Brasília: perfeitamente senhora de seu destino de capital de um país em que os milagres do progresso sucedem cada dia, evidenciados por taxas inacreditáveis de crescimento econômico, por obras onde o arrojo se equipara à competência, por aquisições de cunho cultural que incorporam ao conhecimento e à atividade produtora milhares de cérebros, plasmados tanto no Mobral como nas Universidades.
Contudo, Brasília não é apenas a cidade ímpar, chamada por alguns de Esperança, por outros de Alvorada; ela virou símbolo da raça brasileira, na sua força criadora, na sua capacidade de querer e poder.
Já no itinerário do esteta se transmuda em arroubo ou pasmo, quando o velho artesão que elabora os crepúsculos do altiplano, recama de verde, vermelho e sangue, amarelo, ouro e rosa, cinza, azul e anil as linhas alvissareiras de uma arquitetura, mais escultura que construção.
Todavia, por que insisto em arrancar à língua desapossada os vocábulos que lhe cantem história e esplendor?
O poeta WALDEMAR LOPES, que me escuta com fidalguia o ingresso nesta Casa, traduzindo seu colega uruguaio CARLOS RIOS, oferece no “Canto a Brasília” a beleza que persigo. É só tomar-lhe, por empréstimo, os versos e o talento:
“A cidade nasceu para o futuro
contra arautos pressagos e descrentes,
contra os tímidos, tardos e agoureiros
contra quem teme os saltos do progresso.
Nem as alterações mais imprevistas,
Nem novas condições, quando mudados
Os homens e os sistemas, conseguiram
Matar o seu impulso, ou derrotá-la.
Pois não é monumento a glórias vãs,
Nem um ato gratuito de grandeza,
Mas a bela expressão pura e precisa
De uma pátria a criar seu Amanhã,
Irrevogável signo do destino
Sobre os vôos audazes do otimismo.
E a cidade se fez. Só um decênio
bastou para fazê-la: eis o milagre!
Jogou a Geometria com seus cubos,
curvas ousadas, arcos desnudados,
na despojada e enorme construção
caprichosa e arrojada, espaço nobre
em que buscam os homens seu roteiro
para encontrar no tempo o ano dois mil.
Isolada de todas as fronteiras,
alerta sentinela, no Altiplano,
vela Brasília, altiva, o Brasil novo
e de um povo feliz o alto destino”
Pois bem, “nesta cidade que nasceu para o futuro, contra arautos pressagos e descrentes, contra os tímidos, tardos e agoureiros, contra quem teme os saltos do progresso”, alguns dos recém-chegados se reuniram para alevantar uma tenda a Minerva e nela agasalhar a arte literária que traziam por bagagem. Seu idealismo, sua firmeza, sua decisão estavam alicerçados no renome de cada qual e na convicção de que a ACADEMIA BRASILIENSE DE LETRAS gozava de espaço reservado nas necessidades intelectuais da altiplanura a fim de ser entidade que, simultaneamente congregue os homens de letras transferidos para a Capital da República a leve a todas as demais regiões do país as mensagens de integração e otimismo que tecem a natureza espiritual desta cidade de homens ousados, valorosos candangos. Academia local e nacional a um só tempo, pela posição e categoria de sua cidade-sede, é como foco de luz que, alteado num centro, ilumina e aquece todos os pontos do ambiente. Fundada também com o intuito primacial de preservar a machadiana unidade literária, na multiplicidade cultural que somos, a Casa de PEREIRA LIRA, do Ministro JOSÉ PEREIRA LIRA, paradigmal figura de intelectual e amigo, se identifica com os nossos chapadões e absorve aquela sua ânsia de ir, com o vento, aos infinitos da criação; seu dom primitivo de inventar a beleza com retorcidos cerrados, os quais um paisagista rareia para se tornarem em jardim; seu espetáculo quotidiano das luzes, cedo e à tarde, quando lampadário moderno o prolonga noite a dentro; as rodovias em reta, as cintilações siderais tão próximas, os prédios na forma infantil – isto é, simples e agradável – dos retângulos e das torres.
A Academia, asa singela em que o estímulo e a recompensa viajam à mesa do escritor; fórmula estética que recria pau-terra e céus, estrada, casa, a estrela e o homem no esforço transfigurador do poema e do ensaio, do romance e do conto; simbiose e movimento; prefulgência, sentido e meta, a Academia é Brasília nas letras.
Graças à irresistível abrangência da Capital e sua Academia é que, acionado por lisonjeiro convite de ALMEIDA FISCHER, DOMINGOS CARVALHO, WALDEMAR LOPES e ADERBAL JUREMA aqui me vejo, envolto por júbilos e honrarias, mas seguido também de carecimentos que não escondo e dos velhos sonhos de uma carreira literária que não realizei, porque não pude, como pôde Ulisses, resistir ao chamamento das Sereias: no meu caso, a Advocacia e a Política; duas fascinantes Sereias...
E é dessa maneira, Senhores Acadêmicos, que entro para a vossa companhia, onde deparo e homenageio a privilegiada inteligência, o conhecimento atuante e almas ricas das mais perfeitas sensibilidades.
Aqui estou e chego trazendo meu Goiás que se partiu, generoso e vidente, para que a Nação se expandisse no rumo das potencialidades e das afirmações, redescobrindo, com tratores e aviões, motoniveladoras e mapeamentos, engenheiros e políticos, economistas, soldados e universitários, os caminhos da penetração que bandeirantes traçaram nas águas dos grandes rios, nos campos favoráveis e nas matas, cujas árvores entremeavam a folhagem no gesto inútil de esconder, às passadas heróicas, o ouro e o índio.
Trago meu Estado, que aceitou o desafio de sua situação geográfica e ora irradia para toda a federação, positivas realizações de progresso social, onde a cultura e essencialmente a cultura hodierna é meta prioritária, do povo e seu governo.
Venho assentar-me ao vosso lado, mas não me acho sozinho. Só, talvez não tivesse ânimo de vir. Sinto ao pé de mim as forças de minha gente, na sua vocação para participar e servir. A luz desse momento, portanto, não resplandece num, mas em muitos. Os muitos que em Goiás escrevem, amam as letras, acreditam que literatura não é apenas a arte do belo, pela palavra fixada, nem, como afirma POUND, “linguagem carregada de significação”: antes que tudo é vivência.
Se em mim somente refletisse, quão demasiado seria para a fragilidade de meus merecimentos!
A incumbência estatuída de falar-vos sobre Aluísio Azevedo, o patrono de minha cadeira nº 23, muito me apraz, Senhores, porque não tenho deslembrada minha ascendência maranhense, que se não me proporciona intimidade com a grandeza histórica do Estado setentrional, me suscita condições de relembrar aspectos da vida e obra de seu expressivo filho, não sob a análise profunda do conhecedor, mas com as fraquezas do sangue, os deslumbramentos, se os houver, de um parente. Se não pela carne, certamente pelo espírito...
Arrependo-me, no entanto, de haver efetuado nova leitura da obra de Aluísio Azevedo, quando deliberei escrever esta palavra de estilo.
As cenas de “O Mulato”, antológicas há tantos anos, já não me elevam aquela emoção do primeiro contato, quando as teses humanas expostas pelo revolucionário romance me escandesciam a alma ou ensombravam meus olhos; as atribuições de Magdá, nas intérminas horas do viver real e os sonhos de entrega e felicidade que diligenciava encompridar e amiudar, agora me aparecem com quase toda a sua beleza perdida; André Miranda de Melo e Costa, o Coruja, considerado por ALCIDES MAYA “triste como a dor, grande como um protesto atirado ao destino”, eu o encontro artificial e masoquista, deixando que minha preferência recaia no afortunado e belo Tobaldo, em cuja vida A. DE ALMEIDA PRADO enxerga traços da própria existência de Aluísio. Teobaldo, “jovem príncipe aborrecido” que Aluísio conduz com “tez aveludada e pura, sorriso crespo e frio, olhar indiferente e terno a um tempo” é tipo bem melhor que Amâncio, o herói lascivo do “Casa da Pensão”, onde meu interesse atual reside na indecisa Hortênsia, a que não pecou mas sofreu, a que se realizava dançando com Amâncio, tal qual a fidalga personagem de “O Homem” que ia ao paroxismo do gozo sonhando com o cavouqueiro Luís.
“Hortênsia voltou-se para ele, ia talvez desenganá-lo; mas a orquestra, que havia emudecido depois da quadrilha, deu sinal para a valsa. Era o Danúbio, de Strauss.
O rapaz ergueu-se como um soldado que ouvisse tocar o rebate.
Ela não resistiu, levantou-se de um salto e entregou-lhe a cintura.
Dançaram. A princípio vagarosamente: depois como a música se acelerasse, Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar, a cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração doida.
A música redobrou de carreira.
Foi então um rodar convulso, frenético: a casa, os móveis, as paredes, tudo girava em torno deles.
Hortênsia dançava tão bem como um rapaz. Os dois pareciam não tocar o chão; os passos casavam-se como por encanto; as pernas gravitavam envolta uma das outras com precisão mecânica.
Encheu-se a sala de pares. Amâncio fugiu com Hortênsia, sem interromper a valsa; pareciam empenhados numa conjuntura amorosa. Ela arfava, sacudindo o colo com a respiração; os seus braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos amorteciam-se ao hálito fogoso do estudante.
De repente, Amâncio parou, exausto. Ouvia-se-lhe de longe a respiração.
__ Não! não! balbuciava ela, quase sem poder falar.
__ Ainda! Mais um pouco!...
E abraçaram-se e de novo, freneticamente.
Quando parou a música, Hortênsia calu sobre um divã pelos braços de Amâncio.
Não podia dar uma palavra; não podia abrir os olhos. Sua respiração parecia longos suspiros contínuos e estalados”.
Por que, me pergunto, não sei regressar ao frêmito do primeiro convívio com o soberbo novelista? Por que, inquiro, não me assalta coração e mente a paixão descrita, o medo narrado, o aviltamento, a intriga e o namoro, a cobiça, o orgulho e o amor que Aluísio soube detectar em seus livros, assaz estudados? O Natal mudou mesmo ou fui eu? A verdade é que mais leitor que escritor, menos estudioso das letras que um namorado delas, sou machadiano no gosto literário e ouso procurar no escrito a construção artística, a frase elaborada, os caminhos mal divisados, o debuxo, a sutileza psicológica, o fluxo e refluxo das almas; na paisagem o que me convence é o homem.
Não representa a predileção que eu desenhe “a capacidade de retratar personagens coletivas”, que é, como lembra MASSAUD MOÍSES abraçando linha crítica de ÁLVARO LINS, “talvez, a grande força de Aluísio e sua contribuição para nossa literatura”.
Evidentemente, assume caráter de indesculpável heterodoxia subestimar a genialidade com que são modeladas famosas criações de Aluísio: o Maranhão, em “O Mulato”, de moldura para ser a imagem encaixilhada. Diante de seus preconceitos, a sociedade cheia de costumes provincianos, os seus festejos, suas tramoias e sua empáfia, inteligentemente narrados, Raimundo e Ana Rosa refluem para o plano secundário da composição.
Já em “O Cortiço”, a gente nota que o romancista se agiganta ao descrever a vida carioca, que se desenrola na periferia de um Rio em transformação: com portugueses e escravos, peixe e capoeira, danças e prostituição; miséria de toda sorte, num panorama de tropicalismo excitante. LÚCIA MIGUEL PEREIRA depõe:
“Esse pendor para o espetáculo das massas, raríssimo em nossa literatura, fez com que a personagem coletiva do cortiço seja a única que Aluísio Azevedo conseguiu fixar para sempre. Ressoante de cantigas e rixas, cheirando a comida e a roupa lavada, ele representa alguma coisa mais do que a soma de vidas humildes que abriga; é um pecado do Rio, e um momento de sua evolução que se perpetuam neste livro. O seu autor tem sido acusado de não haver criado um único tipo, uma só dessas figuras que se incorporam à sociedade civil, tão representativas são de sua época. E de fato, só recorrendo à coletividade é que atingiu em cheio a vida. O que equivale a dizer que não chegou nunca ao âmago da alma humana, que ficou na superfície – mas, a esta, exprimiu inteiramente. A sua fraqueza num ponto vem de sua força no outro, de ter sabido melhor ver do que penetrar”.
“Casa da Pensão” explora também a problemática de significação social, mas sai do subúrbio para vir ao centro urbano da Corte, penetrar-lhe as lojas, freqüentar seus luxuosos hotéis, o teatro, as atrizes, os bailes fidalgos desfruir, espreitando o gordo dinheirinho das províncias alimentar vícios citadinos, convivendo com estudantes, dissecando as moças casadoiras: é o documentário se enunciando mais alto que o enredo romanesco.
A literatura aluisiana, a que convence, a que permanece, é assim: verdadeiros painéis, onde o povo se movimenta ou a sociedade de define, com todas as suas qualidades notáveis, quer positivas, quer negativas, mais essas que aquelas. Aliás o próprio ficcionista certa vez confessou, como a justificar sua obra aos críticos vindouros: “fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação, que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho meus romances, depois redijo-os”.
Com efeito, o filho da “formosa sinhá-moça” EMÍLIA AMÁLIA PINTO MAGALHÃES, que escreveu, em pouco mais de dezesseis anos de produção, nada menos que 11 romances, 10 peças de teatro, um volume de contos, não contando artigos de jornal e poesias, – poesias ruins, pois a arte poética, “a mais condensada forma de expressão verbal”, não se ajusta à linguagem derramada e ornamental de Aluísio – foi artista fecundo mas apressado, que pintava jogando nas cores variadas e flamantes de sua criatividade, com grandes e enérgicas pinceladas, a realidade meticulosamente catada, sem que o impressionassem sutilezas técnicas ou estéticas. Do mestre naturalista preservo um quadro que não me canso de estimar, tal a vida que dele promana, a riqueza plástica de sua concepção. Vou atrair à vossa lúcida contemplação detalhe de o amanhecer no cortiço:
“Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por trás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se, já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda, ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra “.
Aluísio não ultrapassou os 56 anos, compreendidos entre 14.4.1875 e 21.1.1913. No Brasil de Pedro II celebrou 32 aniversários de nascimento; assistiu, maduro, à extinção da escravatura e ao advento da República, e morreu às vésperas da Grande Guerra. JOSÉ DE ALENCAR, JOAQUIM MANOEL DE MACEDO, JÚLIO ROBEIRO e RAUL POMPÉIA foram seus contemporâneos. “O Coronel Sangrado”, “Dom Casmurro”, “A Conquista” e “Recordações do Escrivão Isaias Caminha” surgiram em seu tempo. Não obstante a heroicidade da época em que existiu e o desafio dessa comtemporaneidade tão marcante, a obra de Aluísio Azevedo nos legou alcança até agora edições disputadas e, desde a publicação dos volumes iniciais, mereceu estudos de autorizados nomes de nossa história e crítica literária. Destrinçaram-lhe o naturalismo e romantismo dos livros, analisaram sua linguagem e limitações, pesquisaram as influências que recebeu, pesaram a contribuição que trouxe à literatura brasileira não apenas JOSÉ VERÍSSIMO e RAIMUNDO MENEZES, mas também, entre outros, TRISTÃO DE ARARIPE JÚNIOR, EUGÊNIO GOMES e HERMAN LIMA, BRITO BROCA e JOSUÉ MONTELO, ALCIDES MAYA, MARIA DE LOURDES TEIXEIRA, AGRIPINO GRIECO, RONALD DE CARVALHO, OLÍVIO MONTENEGRO, ÁLVARO LINS, ADONIAS FILHO e MASSAUD MOISÉS, sem contar LÚCIA MIGUEL PEREIRA que, na esplêndida introdução ao romance “Uma lágrima de mulher”, distribuído pela Livraria Martins Editora, escreveu síntese que abona o ligeiro desaponto com que reli a coleção aluisiana:
“Parece ter havido, em Aluísio Azevedo, uma condição essencial, que se poderá exprimir sucintamente dizendo que foi um naturalista com horror à realidade. O seu feitio independente, sempre em revolta contra o meio, devia levá-lo à literatura de evasão, mas a moda do tempo o impelia para a objetividade, e o real que assim se obrigava a buscar não o satisfazia, antes como que lhe repugnava, preso que ficara aos pormenores mais grosseiros. Essa incapacidade de ter uma visão mais ampla e generosa sem dúvida doutra anomalia de seu temperamento, de ser um criador sem dons poéticos. Basta abrir qualquer trecho em que se queira elevar acima do quotidiano, quer pela abstração, quer pelas descrições, para se ver como, perdendo contacto com o imediatamente próximo e tangível, cai na declamação. Até o seu estilo, límpido e fluente, sofre de uma certa opacidade, não tem vibração, não consegue sugerir nem prolongar emoções”.
Apesar de este e outros reparos, a literatura do meu patrono não morre nas estantes: é procurada, lida e debatida há quase um século! Um alongado tempo, espesso e inclemente, que sepultou nas traças do esquecimento verbi gratia o pioneiro INGLÊS DE SOUZA e o fértil COELHO NETO...
Quero, pois, avivados, em nosso espírito, os aplausos a Aluísio Azevedo, cognominado David, o Belo, lhe transmitiu caracteres de formosura que o escritor gosta de evidenciar em seus heróis. Raimundo possui “olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis”; Amâncio é moreno, “de cabelos crespos”, e Teobaldo com “olhos negros, pestanudos, boca fidalga e desdenhosa”, o mais bonito deles.
Quero também rememorada em Aluísio a freqüente ternura pela mãe que, infeliz no casamento, teve o desassombro de ir viver amasiada com o homem a quem verdadeiramente amava, deixando a população de São Luís do Maranhão de queixo caído, por muitos anos. Talvez esteja aí, nessa sua patente afeição pela mãe – mulher carinhosa, linda e de fibra, com reconhecimento traquejo literário – a razão pela qual Aloísio concebe de modo simpático várias mães de seus romances: Olímpia, odiosa sogra de Leandro, mas extraordinária protetora da felicidade de Palmira, sua filha; a mulher que gerou o desditoso Amâncio, essa resignada Ângela, “foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e os queixumes”. “Também” – é o próprio escritor quem declama – “só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister. O que se lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, – brota, floreja e produções consolações. Neste não há chama que devora, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite”.
Laura, a doce genitora de Teobaldo, apelidade Santa, logrou ser, por um instante, mãe que o Coruja perdera aos quatro anos, quando ela o beijava na testa, ao se conhecerem. E Da. Isabel, no cortiço, veste de ridicularia e encanto a solicitude materna, quando padece a se alvoroça ante a retardança e o advento de as regras inaugurais de Pombinha. Até que em sua cegueira pelo sucesso da filha, não entende que a rapariga Léonie estava esculpindo na virgindade de sua menina-moça a própria libidinagem.
Em Aluísio, vida e obra se confundem, se afinam a tal ponto que um de seus biógrafos lhe equipara a existência de um romance. Moço pobre, caixeiro, pintor, funcionário público, boêmio... Nos armazéns, apanhou a lida do balcão que transpõe para memoráveis páginas com o realismo dos cheiros e dos ruídos, da azáfama e da ganância; da pintura extraiu o grandioso, aprendeu a reprodução exata dos modelos, seja um cortiço, a cada de pensão ou um mulato. Filho de diplomata, a carreira paterna, que atinge depois de muita canseira em busca da atividade estável que o desfizesse da obrigação de compor folhetins para sobreviver, lhe foi adversa: Vigo, Iokoama, La Plata, Salto Oriental, Cardiff, Napoles, Assunção e Buenos Aires configuram, com breves dias de ventura e animação, a nostalgia, saudades, solidão, o enfaro de os serviços burocráticos, desterro, um rosário de queixas, o infortúnio constante cujo epílogo é mesmo morte. É bem verdade que antes dela lhe veio a eleição para a Academia Brasileira de Letras, mas também lhe aconteceu a impossibilidade de continuar escrevendo. Longe da terra e da contemplação de seu povo, o maranhense inquieto não pode mais escolher pincéis, armar a tela, liberar tintas, elaborar grandes murais, reviver esses espetáculos humanos em que o povo se instala no primeiro plano com todas as suas alternativas de encarar o mundo, nem sempre enfadonho e pesado. Custa muito aceitar essa defecção! O jornalista irreverente e polêmico, o caricaturista vitorioso, por que esmaecem no exterior? Por que o romancista e mesmo o mau poeta se emudecem no vice-cônsul? E Aluísio dispunha de tudo para ater-se à literatura que já lhe atribuira fama, meio de vida, a imortalidade. Granjeara a tranqüilidade de vencimentos certos, embora os julgasse parcos. Sua sensibilidade para o amor e a aventura, que aflorava onde houvesse mulher cativante e situações divertidas, podia atualizar-se em qualquer parte. Não é difícil descobrir aquelas suas condições essenciais: basta querer...
Contudo, o esgotamento se efetiva, a criação literária desaparece, o escritor maranhense vira página do passado: a morte toca-lhe mais cedo às letras que à vida. É certo que no coração já lhe pesavam mortos sua querida mãe e o abnegado mano Arthur...
A propósito, quando lhe faleceu a mãe, no Maranhão – é RAIMUNDO MENEZES quem o conta – BILAC, MURAT, COELHO NETO, GUIMARÃES PASSOS, PARDAL MALLET e PAULA NEI ao visitá-lo, o encontraram arrasado, com os olhos vermelhos de tanto chorar. A turma se compadece. Mas, “o romancista, além de outras preocupações, está a braços com a do luto, impossível na ocasião pela absoluta falta de dinheiro. A única roupa que possui é um terno cinzento, absolutamente inútil em tal emergência.
Guimarães Passos havia aportado, porém, recentemente de Alagoas, e é dono de um terno preto, destinado a grandes cerimônias. Corre à casa, e volta com a fatiota, para emprestar ao amigo, enquanto este arranja outro.
Passa-se, entretanto, o primeiro mês. Passa-se o segundo. Passa o terceiro, e Aluísio não devolve o terno preto, em que se mete diariamente. Guimarães Passos não suporta mais a demora; planta-se, uma tarde, à Rua do Ouvidor, ao lado de Coelho Neto e Alcindo Guanabara, e, à passagem do autor de “O Mulato”, que vem com a roupa emprestada, chama-o:
_ Aluísio!
E fazendo-o parar, intimativo:
_ É preciso que alivies o luto!...
Quem o alheio veste, na praça o despe. No outro dia, o romancista aparece com o seu surrado terno cinzento e um fumo no braço”.
Prosseguir, ainda, seria afoiteza e abuso. Não pretendo cometê-los contra auditório tão compreensivo e nobre. Mas o invoco, Senhores Acadêmicos, como testemunha do compromisso, que assumo, de retribuir quotidianamente, pelo trabalho e pela unção, a honra deste instante.
TALISMÃ NO MAR DAS SEREIAS
(Discurso de recepção do escritor Ursulino Leão na Academia Brasiliense de Letras)
Waldemar Lopes
Vem receber-vos, Senhor Ursulino Leão, no limiar desta Casa, votada aos interesses das letras e da cultura, quem poderia ser também – como vos dissestes – fazendeiro, por amor ao verde e à quietude; mas, preferiu arar os chãos do azul , pela exagerada confiança na seiva do sonho. Escutai, pois, a voz fraterna: já não vos cabe repetir a “confissão do abandono”. Se vos faltou, por vezes, a bravura interior para fugir ao chamamento aliciante das sereias desviadoras – a advocacia e a política –, haveis de convir em que esta segunda láurea acadêmica representa, para vossa incoercível vocação literária, um talismã premonitório, um signo de redenção. Podeis ajustar, assim, as esporas de estrela, para a cavalgada ideal pelos campos da imaginação criadora.
O PASSADO DE GOIÁS
Considero um grato privilégio a alegria intelectual de transmitir-vos, nesta noite, a saudação da Academia Brasiliense de Letras. Vindes de um Estado a que me acho sentimentalmente ligado, seja pela simpatia com que, no exercício de funções públicas, acompanhei seu esforço para quebrar as cadeias do subdesenvolvimento, seja pelas boas lembranças que me ficaram da íntima participação, com tantos outros brasileiros de diferentes regiões do País, naquela memorável festa de inteligência e emoção que foi, há trinta e três anos. O Batismo Cultural de Goiânia.
Guardo viva na memória do amável convívio com as figuras da “élite” intelectual de vosso Estado, naquela época – algumas ainda hoje meus amigos, outras mais cedo colhidas pela asa da morte; das ruas recém-traçadas de vossa jovem Capital, no alongado colorido de sua terra vermelha; das noites amplas, estreladas e frias, sob os céus generosos do Planalto; da alegre casa da Rua 20, onde agora está a Faculdade de Direito de Goiás, cedida por Pedro Ludovico para hospedagem de quatro casais ligados, ao longo da vida, pelos mesmos vínculos de afeição; e, sobretudo, da confiança e entusiasmo com que se antevia, três décadas atrás, o que haveria de ser, pelo trabalho construtivo, pelo ímpeto realizador das novas gerações, a dinâmica, simpática e acolhedora Goiânia dos nossos dias.
Em Goiás, seduziu-me sempre a extrema pureza do espírito brasileiro, em sua primitiva autenticidade. Será, talvez, uma das características sociológicas das áreas culturais mediterrâneas. Nelas se preservam melhor a genuidade dos costumes, as linhas do comportamento social, os valores lingüísticos arcaicos, os mitos populares, a própria filosofia da criatura humana, em face da vida, do destino da morte. Essas peculiaridades se acentuam, sobretudo, num País como o Brasil, do qual se disse – antes de Goiânia e Brasília – que, pela variedade de seus segmentos etnográficos, em diferentes graus de evolução, a caminhada no espaço geográfico se confundia com a reversão no tempo. Avançar, interior adentro, pelas grandes áreas do Centro-Oeste, equivaleria, assim, ao reingresso progressivo nos primeiros séculos da conquista e do povoamento.
No caso específico de Goiás, parte mais central do Brasil, o fenômeno indicado adquire características ainda mais fascinantes. Por uma curiosa predestinação histórica, o próprio topônimo estadual já traz em si, dentro do poder de concisão expressiva do idioma tupi, conotações de afinidade e confraternização: “guaiá – o indivíduo parecido, gente da mesma raça”. Além do mais, as condições da ocupação do território, sob a atração do ouro, conferiram a Goiás traços singulares, na contextura nacional.
Fez-me aquela ocupação mediante a convergência de elementos humanos de todo o ecúmeno brasileiro, – amálgama sugestivo das mais diversas correntes demográficas, em termos de integração cultural. Daí resultaram a multiplicidade e riqueza dos contatos antropológicos; a vitalidade das forças periféricas, obrigadas a afirmar-se para não perecer, e que, por todo o País, tanta influência exerceram nas fases iniciais de nosso processo histórico-social; a lenta consolidação do material lingüístico, a valorizar-se e enriquecer-se na medida em que sua base estática recebe as múltiplas contribuições de uma cultura dinâmica, em permanente devir.
AS pessoas menos atentas aos fatores e condições do processo de formação do Brasil, receberão, decerto, com espanto o registro de que, apesar do “atraso com que chegavam a Goiás literárias dos grandes centros culturais” – conforme anotou Gilberto Mendonça Teles – tão significativos empreendimentos, no plano da cultura, viessem a contrapor-se à pressão negativa do isolamento geográfico: “a instrução primária, iniciada em 1788 nas cidades de Goiás, Pirenópolis e Pilar de Goiás, ao mesmo tempo que, nas duas primeiras, surgem também os primeiros professores de Latim e Retórica, isto é, de Língua Portuguesa; o jornalismo, que, desde 1830, quando apareceu a Matutina Meiapontense, vem desenvolvendo-se através de jornais de vida efêmera, mas que não deixaram de contribuir para que, já em 1869, data em que surgiu A Província Literária, sob a direção de Felix de Bulhões, constituísse o gênero “literário” dominante; a criação de uma biblioteca pública em 1850, na capital da Província, depois de já existir uma em Pirenópolis, numa rivalização intelectual que só não continua nos dias atuais devido à ação centrífuga e cultural de Goiânia na zona central do Estado; a criação do Liceu de Goiás em 1847; a fundação do Gabinete Literário Goiano em 1864; a importância humanística do Seminário Santa Cruz, fundado em 1873 e responsável pela formação intelectual dos primeiros homens públicos e dos primeiros escritores; e, já no século vinte, o aparecimento da Academia de Direito em 1903 e da Academia de Letras, em 1904”.
O LOUVOR DA PALAVRA
É dentro desse contexto histórico-cultural que se explica a presença de Goiás, nos fins do século dezoito, para ensinar Gramática Latina, daquele que, segundo alguns historiadores, foi o primeiro poeta goiano. Bartolomeu Antonio Cordovil, a cantar na Pirenópolis de quase dois séculos atrás, então Meia-Ponte, seu ditirambo a ninfas imaginárias. Ou, ainda, outra presença não menos expressiva, na última década do século passado e primeira deste século, de um poeta da categoria de Manoel Lopes de Carvalho Ramos, que trouxe de sua Bahia a flama da inspiração condoreira, haurida, como no caso de Castro Alves, nas fontes românticas de Victor Hugo, para que dela impregnasse o seu poema épico Goiânia, escrito em 1896, sob clara influência camoniana.
Não deixarei de refletir também – e acrescentaria: num preito de homenagem e recolhimento – a extraordinária figura de trabalhador intelectual, professor de Matemática e Geografia, que foi Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Causa surpresa e emoção que, em sua plácida Vila Boa de Goiás, onde certamente escasseavam estímulos e recursos para iniciativa tão ambiciosa, lhe fosse possível realizar uma obra da significação e amplitude do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, ponto culminante no conjunto de sua produção literária e científica, e, ainda, verdadeiro monumento à glória d função da palavra.
É, por isso mesmo, inestimável a dívida de todos nós que temos no verbo gramaticamente materializado, em seus valores mágicos e lógicos, o instrumento de nosso rude ofício, para com aquele que, num esforço gigantesco de pesquisa, sistematização e ordenamento, nos pôs ao alcance de fácil consulta as múltiplas conotações, sutilezas e mudanças dos recursos vocabulares, em “estado de dicionário”. Senhor desses recursos é que vive o escritor o íntimo conflito da escolha em face da página em branco, para a construção de seu reino encantado de símbolos, metáforas e alegorias.
E não será nunca um autêntico homem de letras quem não tiver pela palavra respeito quase místico; quem nela não identificar a ferramenta básica de seu trabalho de criação. Neruda ante elas se prosterna, pressentindo com reverente humildade “lãs que cantan, lãs que suben e bajan...” E eis que, ante seus olhos ungidos de poesia, elas “brilhan como piedras de colores, saltan como platinados peces, son espuma, hilo, metal, rocío...” “Todo está en la palabra... Uma Idea entera se cambia porque una palabra se trasiadó de sitio, o porque outra se sentó como una reinita adentro de una frase que no la esperaba y que le obedeció... Tienem sombra, transparência, peso, plumas, pelos, tienen de todo lo que se les fue agregando de tanto rodar por el rio, de tanto transmigrar de patria, de tanto ser raíces... Son antiquísimas y recientísimas... Viven en el féretro escondido y en la flor apenas comenzada...”
Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, com o dicionário de idéias afins, que não chegou a ser publicado valoriza o poder encantatório da palavra, em toda a sua dimensão e densidade, e lega aos escritores brasileiros um material lexicográfico que, favorecendo a clareza e precisão da escrita, como fonte de consulta e instrumental de trabalho, é também elemento coadjuvante, sob o mistério da inspiração demiúrgica, na eclosão do ato criador.
Vê-se que, apesar dos fatores geográficos desfavoráveis, pelas dificuldades impostas ao relacionamento e intercâmbio com os centros literários mais avançados, Goiás sempre deu provas de atividade intelectual, e soube imprimir às realizações de seus poetas e escritores as marcas de um processo histórico em que o sentimento de Brasil é um compromisso permanente. Com esses antecedentes ilustres, não surpreende a força vital da literatura goiana de nossos dias, em cujos quadros, Senhor Ursulino Leão, ocupais lugar merecido relevo.
O ROMANCISTA
É curioso assinalar que, no roteiro de vossas produções literárias, invertestes a evolução natural verificada na obra de outros autores, com o trânsito incomum do romance para o conto, e não deste para aquele. Mais freqüente é fazer da história curta uma espécie de exercício intelectual, de revigoramento dos músculos da criação, para, depois, dominar os espaços mais amplos do romance. Em vosso caso, houve a inversão desse itinerário habitual no processo criador. Duas razões poder-se-iam invocar, para explicar a singularidade.
Note-se, antes de tudo, que o Maya é o único de vossos livros escrito longe das impregnações sentimentais e da influência inspiradora do ambiente goiano. Romance “à clef”, aparentemente, representa, sem dúvida, o primeiro choque de vosso idealismo com as contingências dos relacionamentos humanos. Marca, também, a vossa surpresa e desencanto em face de um contexto cultural que tão fundo violentava o patrimônio de lembranças, legado de vivencias anteriores em Crixás e Anápolis. É, por isso, tipicamente, um romance de desencontros. Mas é, por igual, um largo painel, talvez ainda um tanto assimétrico, das inquietudes e aspirações de vossa geração, no período de após-guerra, de tão fecundas indagações no pensamento brasileiro.
E é sintomático que os episódios derradeiros da urdidura ficcional correspondam precisamente a um ato de retorno do narrador, no sentido geográfico e psicológico. Não seria bem “a infância de outra vida”. Antes, o reencontro com as forças telúricas de sua formação, a viagem de regresso para dentro de si mesmo. Tudo esmaecia, diluído no tempo, ante a decisão da volta, e conseqüente reintegração nos valores essenciais de realidades mais íntimas. Daí o registro melancólico: “Interessante. Como as coisas mudam de repente! Naquele momento, seguindo para o meu embarque, Maria do Rosário e Hermano não passavam de criaturas comuns que encontrara fortuitamente. Sem nenhum significado. Dessas pessoas cuja estrada se alonga em direção contrária ao que demandamos. Mas, como me fizeram sofrer até então! Como me haviam tornado pusilânime!”.
Já observava Álvaro Lins, com a sua aguda sensibilidade crítica, que “no romance é que se pode ver bem a grandeza que existe na ilogicidade dos atos e fatos humanos”. Também a vida é uma aventura de desencontros. Ou o “romance sem fim” a que aludia Maritain.
O CONTISTA
Outra aparente razão para que, estrelando como romancista na juventude, viésseis a ser, na maturidade, antes o contista, reside na evidente predominância do conto, como gênero literário, na ficção goiana, desde as tímidas experiências da última década do século passado, até a brilhante afirmação de tantos valores atuais, como um Bernardo Elis, um José Veiga, um Bariani Ortêncio, um Carmo Bernardes, um Alaor Barbosa, um Miguel Jorge, e tantos outros.
Entre os mortos, nenhum supera Hugo de Carvalho Ramos, cuja presença no ficcionismo brasileiro cumpre realçar, além de tudo, pelo sentido de antecipação daquelas “intenções denunciadoras”, anotadas por Lúcia Miguel Pereira, a partir do momento em que “a sorte das criaturas” passa a predominar sobre “a cor local” e a nota exótica.
O progresso social, a lenta e gradativa implantação da justiça na cidade dos homens, muito deve à capacidade de denúncia e revolta dos criadores, no mundo da ficção. Sem o seu testemunho e o seu protesto, bem mais retardado seria o acordar da consciência do mundo, em face das injustiças e desigualdades sociais. Hugo de Carvalho Ramos inscreve-se, com a sua prosa rica de colorido, mas também atenta a essas injustiças e desigualdades, entre os que fazem da literatura um instrumento de consciência crítica da sociedade. Esse é ainda o caso de Bernardo Élis – em quem facilmente se identifica uma honrosa linha de continuidade com o criador de Tropas e Boiadas, em nível de cumiada, na cadeia de montanhas de literatura goiana.
Como se explicaria a tendência, assinalada em alguns escritores de Goiás, não para alongar o conto em romance, mas, sim, para desdobrar seus romances em contos?
Já se demonstrou, em numerosos estudos, no campo da teoria literária, a inexistência de leis específicas para a caracterização do “conto”, como gênero autônomo. Nosso companheiro Domingos Carvalho da Silva, em arguto ensaio sobre o problema, ressalta “a disseminada incerteza quanto aos limites e atributos de tal tipo de composição literária e as dificuldades de defini-lo e até de conceituá-lo”, e chega à conclusão de que e teoria se mostra incapaz “de explicar o que é um conto”.
Apesar da inexistência de leis específicas, para caracterizar o gênero da história curta, há, nele, alguns valores típicos que o dissociam substancialmente, na técnica estrutural e nas marcações de tempo, da novela e do romance. Talvez precisamente aquelas virtudes que, em termos de tensão emocional, mas o aproximam do drama que da narração romanesca.
Os vícios do romantismo – assinala Mário da Silva Brito – estimularam o florescimento de uma forma narrativa caracterizada pela “prolividade, a eloqüência, o excesso de imaginação, a fantasia, o sentimentalismo, as expansões derramadas, a exuberância de emoções e de linguagem”. Mas – ressalta –, no caso do Brasil, “o conto assumiria a sua estrutura de contenção e sobriedade, muito tempo depois, com Machado de Assis, cujas produções iniciais, se bem que quase sempre superiores à de seus predecessores, ainda estão eivadas dos vícios da escola, e desbordam dos limites que o gênero exige”.
Nos últimos tempos, entretanto, a bem dizer por toda parte, a tendência do conto moderno caracteriza-se pela prospecção intimista, pela caracterização psicológica, talvez como fórmula de reação às influências desumanizantes da era tecnológica. Vai-se perdendo em amplitude horizontal o que se ganha em verticalidade, concentrada numa visão abrangente da essência do ser, apreendida em suas camadas mais íntimas e profundas. O testemunho social, sim, mas, sobretudo o mergulho nas obscurezas da criatura. O exotismo, de paisagem ou de linguagem, já não se impõe, dominador, como fonte de inspiração; antes, como valor subjacente, e a que pouco se recorre. A par disso, a consciência artesanal vigilante, de que resulta, muitas vezes, outra realidade ficcional, tendente não só à busca introspectiva, mas também à fusão, na estrutura do conto, do sociológico e do estético. Não se conclua daí pelo total desaparecimento das sugestões telúricas. Na maioria dos casos elas continuam vivas e atuantes. José Veiga, por exemplo, conforme anota Hélio Pólvora, “envereda pela inspiração fantástica, supar-real, mas tendo sempre como ponto de referência o Planalto goiano”.
Em vosso caso, Senhor Ursulino Leão, vê-se que, transitando do romance para o conto, apenas cedestes aos impulsos de vossa intuição artística, em termos de sobriedade e concisão verbal. É que vosso processo narrativo distingue-se precisamente por esse refinamento da consciência técnico-artesanal, em proveito da densidade dramática e da valorização dos recursos expressivos. Logo, é o conto a forma natural e espontânea em que exercitais a capacidade de criação.
A matriz de vossa consciência literária, vós próprio a indicastes, como formulação de doutrina estética, ao afirmar, em certo passo de vosso discurso: “A verdade é que, mais leitor que escritor, menos estudioso das letras que um namorado delas, sou machadiano no gosto literário e ouso procurar no escrito a construção artística, a frase elaborada, os caminhos mal divisados, o debuxo, a sutileza psicológica, o fluxo e refluxo das almas; na paisagem o que me convence é o homem”.
A esta altura de vossa obra, a parte final dessa asretiva perde o caráter de simples postulado, em que se admitiria o reconhecimento do princípio não demonstrado, para impor-se como realidade tangível e comprovada a quem de detenha na apreciação crítica de vossa contribuição – certamente, ainda pequena em quantidade, mas que sobreleva em importância, atenda sua qualidade – na moderna ficção de Goiás.
Poderia considerar, nesta breve análise, também os contos que compõem o vosso próximo livro, lido no original e em via de publicação. Ater-me-ei, entretanto, apenas ao Existência de Marina, que data de 1968, mas em que já se afirma, com absoluta nitidez, a dimensão de vossa presença no moderno panorama do conto goiano.
Vossa maneira de ser regionalista subordina-se à intenção de fazer do homem o centro e o limite de tudo. A luz desse pressuposto, o conflito das situações, na trama do enredo, tende a resolver-se sempre mediante o predomínio da síntese psicológica, pela superposição do humano ao regional. Em verdade, bem o dissestes: “na paisagem, o que me convence, é o homem”. Poder-se-ia acrescentar: só pelo regional se atinge o universal.
Veja-se, por exemplo, um dos mais bem construídos, mais rico em potencialidades sugestivas, dos contos reunidos e, Existência de Marina: “Jogo do bicho”. Há, nele, a transmutação numa peça antológica, através da recriação artística, de mera cena de botequim, vinculada às esperanças lúdicas que modelam uma das facetas da psicologia social brasileira. É uma história de bar, vivida por motorneiros e condutores de bonde. Tudo gira em torno da vaga confiança na “roleta da vida”. Seres humildes, vencidos, sem nenhuma perspectiva real da ascensão na sociedade, contam ainda “lavar a égua” na centena ou milhar, com a complicada decifração de seus sonhos simbólicos.
Observem-se porem, a humana fragilidade, o desamparo moral, a fria conformação com o destino presentes nas almas simples daqueles homens, tão naturais e espontâneos nas manifestações de seu caráter em véu nem mistério; sua profunda aceitação da vida, como quer que se apresente:
__ Minha mulher não me respeita, Negrão. Quando sonhar comigo, jogue no marido da galinha ou em qualquer outro bicho de chifre.
São de assinalar-se, ainda, no conto examinado, a capacidade de registro do coloquial urbano brasileiro, a autenticidade do dialogo, e, a par disso, o gosto de inusitadas formas de dizer, nas partes de responsabilidade direta do autor, como nesse insólito emprego do verbo desunir: “Antônio Faísca nunca se desune da pasta marrom sem fechadura e do chapéu preto nº 54”.
A imprevista conotação do verbo, completada com a indicação do número, 54, nos transmite, tem termos quase físicos, a idéia do mútuo apego, da estreita vinculação, da intrínseca interdependência do homem, sua pasta e seu chapéu. A partir daí, já não conseguimos visualizar o primeiro sem a presença íntima, constante, de uma e de outro.
Fora de dúvida, o material etnográfico está subjacente em vosso processo de criação. Nunca, entretanto, em primeiro plano. Preferis, isto sim, subordiná-lo à contenção dramática, à insinuação sutil, ao antes sugerido que explicitado, até que o enredo se resolva pela dinâmica do corte imprevisto e radical. “Marina não tem sexo mesmo. Mas, os vossos filhos são os mais bonitos da vila”.
Em vossas mão hábeis de escritor, com perfeito domínio de seus recursos de composição literária, a matéria ficcional ganha relevos de densidade subjetiva, numa constante reação à tendência ao fluxo linear da narrativa. Só, na verdade, uma legítima vocação de mestre da escrita, consciente das potencialidades de seus agentes expressionais, pode compor uma página carregada de tantos significados e tão clara em sua desnuda beleza, como aquela com que encerrastes, em Existência de Marina, o conto “O cofre”:
“Medo de gente, acho, sei certo que ele tinha. Aliás, em mim também gente mete medo, em coração de ninguém eu confio, da cabeça das pessoas sai mais coisa ruim do que tudo. Medo de gente, ele gostava da solidão. Viajar sozinho, de dia ou de noite, comer sozinho, conversar consigo mesmo, o silêncio, o mutismo das coisas, das areias, do sol, das noites sem lua. A solidão é fértil, a solidão é leve, a solidão é heróica, a solidão é suntuosa. Da solidão nascem as estrelas, a solidão gera os sonhos. Pranto autêntico é o pranto solitário, pranto que lava, que refresca, que cura. Igreja de verdade, pra mim, quando não tem ninguém nela e a luz do sacrário está lá no fundo, exprimindo presença, água fresca, sopa quente, olhar de imagem, vento ns folhas, planta brotando, fruto se oferecendo no pé, solidão meu tesouro, meu túmulo.
“Um túmulo é como um cofre. Nos cofres, portanto, puluvam os vermes, que nos mortos constroem o meio de viver? Mas não neste cofre, que vigio, que fito toda hora, sem poder levar ao botão giratório a combinação que sei de cor, número na direção e nas voltas estabelecidas: comece quando aparecer o primeiro fio de luz na sexta madrugada, gire os furos horários partindo da Atlântida desaparecida, três vezes, e quando a pedra do sepulcro for arredada pelo assombro de onze mil dominações, a porta do cofre está aberta e jamais se fechará. Como não se fecham as gueiras do Inferno”.
O CRONISTA
Já no Livro de Ana é a crônica o instrumento de vossa expressão literária. Sabe-se a amplitude que o gênero, ainda mal caracterizado em seus limites conceptuais, adquiriu ao longo do tempo, valorizando entre nós até como elemento fixador, não só das miúdas realidades sociais, senão também, em cada época, da própria linguagem comum, ou das peculiaridades da fala brasileira. São numerosos os testemunhos a esse respeito, mas, seguramente, o prestígio maior da crônica, em nossos dias, resulta da importância adquirida pela comunicação na sociedade de massa.
Por força de sua própria indefinição, como gênero literário, ela comporta os mais diferentes matizes, segundo o gosto pessoal de quantos a cultivem. Para Fernando Sabino, “crônica é um gênero não definido, às vezes evasão, mera expressão memorialista ou reminiscente”. Eduardo Portela, por sua vez, admite que a “crônica hoje se enriqueceu dessa nova função: é elemento de contato entre a ânsia quantitativa da massa e a necessidade de evitar-se o desnível qualitativo da informação. Mas, toda cultura caudatária dos ”mass media” compromete-se inevitavelmente com um auditório heterogêneo e se entrega passivamente às decisões soberanas das médias de gosto. O que vale dizer que a capacidade criadora individual se vê submetida a forças externas, que a entorpecem e anulam”.
Em vossa obra, porém, Senhor Ursulino Leão, a crônica elaboradora sob a pressão imediata do acontecimento, ou sob as sugestões da lembrança, e só recolhida em livro após a divulgação jornalística, assume sentido diferente, em função da própria multiplicidade temática. Pode ser evocação sentimental do que o tempo fixou nas camadas da memória sensível, mas é também registro vivo das realidades político-administrativas e sociais de vosso burgo anapolino, um corte vertical, diria, no momento histórico em que sobre ele incidiu a vossa arguta visão de escritor, de homem público, de memorialista. Daí a gama de temas e assuntos presentes no Livro de Ana. A literatura social brasileira necessita de contribuições dessa natureza, adstritas e pequenas áreas geográficas e políticas – uma vila, uma cidade, uma região –, como subsídios ao entendimento mais íntimo e profundo do grande complexo tão nitidamente influenciado, no caso do Brasil, múltiplo e uno a um só tempo, pela riqueza, colorido e variedade de seus expressivos mosaicos heterogêneos; mosaicos que, ajustados em sua tessitura inconsútil, modelam a trama unitária de uma única realidade – o espírito nacional.
Por isso, o vosso livro de crônicas é um documento válido de nossa psicologia social, dada a capacidade que nele revelais de, através da fixação literária, eternizar o efêmero – o que se proteja, sobre a face do tempo, no ritmo veloz da constante mutação. Nele está presente, em corpo e alma, uma cidade brasileira – a vossa Anápolis –, detectada no fluir do dia-a-dia, com suas figuras características, suas gradativas mudanças de comportamento coletivo, seus valores folclóricos, sua evolução econômica, seus problemas ecológicos e culturais, seus hábitos de convivência, sua gama de relações; em síntese – sua forma de ser, no contexto brasileiro.
Isso é, sem dúvida, história social; isso é registro de vivências, documentário a que, de futuro, se poderá recorrer, para a reconstituição do estilo de vida de um núcleo urbano do interior do Brasil, na segunda metade deste século.
Mas, perpassa também nas páginas do Livro de Ana certo sopro lírico, em que tão vívida se manifesta a sensibilidade do poeta que nunca deixastes de ser. Como, por exemplo, naquela amarga anotação de margem de estrada, sobre o mais terrível e despojado anonimato, à sombra da morte: “São tristes, os silenciosos cemitérios que se levantam à beira dos caminhos, nos sertões goianos. (...) Cruzes toscas, lavradas de facão. Ora grandes, ora pequenas. (...) Os braços, nus. Sem qualquer nome, sem nenhuma data”. Isto nos lembra, em sua pungente realidade, “A morte absoluta” do grande poeta de Estrela da vida inteira:
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.
Não menos tocante aquela comovida evocação do Município onde nasceste, a pátria menor, e tão viva e presente sempre na memória e no coração de cada um de nós:
“Crixás não chega a ser nada, com as suas casas tristes, suas noites sem cabaré, seus campos sem estradas, sua canícula, seu inverno do mês inteiro – sua laranja melhor do mundo! Mas o homem o ama e o menino sabe colher, aqui e acolá, a sua perdida grandeza! Pelos sertanejos angulosos, tão humanamente depurados, alcança a ousada estirpe de bandeirantes que lanhou aquelas terras buscando ouro e poder. Os velhos altares, que cheiram a mofo a aninham morcegos, se lhe fazem de novena festiva: com o incenso, a fé, os cânticos daquela gente construtora de tempos heróicos, brava e simples. O baticum do pouso de folia lhe revela as sensações do esforço negro, criando igrejas e muros. A mulata, a umbanda e todos os medos! A sanfona trêfega, na madrugada que cem galos anunciam, é festa do Divino. Com o imperador, a mesa de doces, a pompa dos foliões! Com os milagres que o Santo fez, confirmados em cera e muletas na penumbrosa sacristia”.
Aliás, Sr. Ursulino Leão, a vossa fidelidade aos elementos fundamentais da cultura goiana, que bem expressastes na oração de posse, ao dizer que sentis ao pé de vós as forças de vossa gente, em “sua vocação para participar e servir”, não se manifesta apenas nas límpidas diretrizes de vossa vida pública. Também está presente na identificação de vossa personalidade com os valores mais puros e ingênuos da alma do povo, como no episódio da Festa do Divino, de que fostes o personagem principal, em Crixás, e que Regina Lacerda anotou em seu Papa-Ceia:
Bate o Tambor,
Tamboreiro,
Que o Imperador
Tem dinheiro.
Sabemos todos, por sinal, que manifestações idênticas, em relação a bens materiais, como a exprimir interesse e inveja, são encontradiças nas tradições folclóricas brasileiras. Assinale-se, por exemplo, a coincidência de sentido entre os versos citados, ouvidos num município do Planalto Central, e alguns daqueles outros que Sylvio Romero já havia recolhido nos Cantos Populares e Pereira da Costa ampliou, com a juntada de novas contribuições, para seu Folk-Lore Pernambucano, como parte do drama pastoril do Bumba-meu-boi:
Cavalo marinho
Dança no terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo marinho
Dança na calçada,
Que o dono da casa
Tem galinha assada.
Cavalo marinho
Dança no tijolo,
Que o dono da casa
Tem cordão de ouro.
O ACADÊMICO
Está ainda por escrever-se o Guia do Perfeito acadêmico. Seguramente, a concepção do “homem cordial”, a que se procurou vincular a imagem típica do brasileiro, entraria como uma das componentes desse modelo, por enquanto ainda indefinido. Ao acercar-se pela segunda vez, e já então certo de que lhe seria aberta, da porta da imortalidade, o grande escritor que foi Gilberto Amado ainda manifestava dúvida, até certo ponto justificada, se seria, ou não, “academizável”. O convívio acadêmico tem sutilezas e singularidades. Isso explica, muitas vezes, porque não basta, como passe livre à ilustre Companhia, o simples merecimento literário, o valor da obra realizada, a própria consagração da glória pública. E talvez justifique porque, um pouco à maneira do que está nos Evangelhos, tantos sejam os que se oferecem, e tão poucos os aceitos.
Em vosso caso, porem Senhor Ursulino leão , pode-se afirmar que nada vos falta para o talhe justo do acadêmico perfeito. Alem dos méritos indiscutíveis , de que destes provas em vossa atuação na vida publica e em vossas criações literárias , sois um temperamento com o gosto da convivência afetiva na comunidade dos homens de letras, sempre inclinando a compreender e louvar, coma tendência inata ao bom entendimento e a conciliação . Essas virtudes de vossa figura humana já as vindes praticando, alias, com segurança e brilho, na presidência da Academia Goiana de letras, e delas dão testemunhos aos vossos confrades de diferentes pontos do País, que ainda recordam a vigorosa liderança , o “saivor faire” ,o equilíbrio com que presidistes, nos idos 72, o primeiro encontro em Goiás das Academias de Letras do Brasil.
CONCLUSAO
Numa instituição como a nossa, não sois, não sereis nunca, em estranho, um intruso, um adversário contrario. Nela podeis entrar sem bater palmas nem pedir licença, como, no céu, a Irene de Manuel Bandeira. Daí o sentimento de fraterna camaradagem e de intimo regozijo com que vos dou as boas-vindas nesta noite festiva de confirmação da vossa imortalidade, em nome da todos os nossos companheiros da Academia Brasiliense de Letras.
Foto: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhA5HXiAS3AS5ZyP5j1lEtGfL9fqNrzjkyBpl16j9Qv2UFXFYBXxQesezIxWITGpv2HESOT1q7N1wIvYvLBh5o5ANFNcymtKJmEIYwRTBRPafN-53_F9rICV4eux5ZyTtsNQJ6SNLc0fllE/s400/ursulino+le%C3%A3o.jpg
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