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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A ESTRELA NASCENTE DO ANJO GABRIEL - Aidenor Aires*


Foto: Aidenor Aires e Gabriel Nascente*

Eu Gabriel Nascente, vim da serragem.
E José também me chamo.
Nasci pouco antes da primeira estrela.
Sou filho do crepúsculo. Sou de 50.
Sou de janeiro. Sou das ruas de chão
Do Bairro Popular, cúpula de gorjeios
Da minha infância,
Sou dos brejos do Botafogo.
Sou de Goiânia.
(O Bié da 75, de A VALSA DOS RATOS)


Estou aqui hoje para reunir memórias. Apalpo nestas palavras a
sincronia que une estradas, concilia veios, acumplicia torrentes e caudais.
Certo de que há maiores mistérios do que é possível sugerir as palavras, ou
desnudar a razão, este momento é, para mim, de reencontro. O que aqui vedes é o balbuciar de um menino dos barrancos do Rio Branco, no Riachão das Neves, Oeste Baiano, estendendo seu chapéu de couro para limpar a frente, varrer os caminhos para que entre e habite entre os espíritos goianos, o menino dos barrancos do Meia Ponte, com seu violino de madeira, sua mão de serrote e seu discurso fractal de serragem e tupia.

Encontramo-nos, na primeira vez, em 1959, após o fatal dezembro que
lhe arrancara o pai, marceneiro e pescador, Antônio Estrela Nascente. Mudara-se, então, com sua mãe Antônia Barbosa Nascente e a grande irmandade, para a Vila Nova. Foram residir em casa alugada do Senhor José Bibica, a melhor vivenda da Rua 206, que era habitada por pequenos comerciantes, carroceiros, lenheiros, alguns funcionários e operários, pedreiros, serventes e lavadeiras. Dois elementos introduziam certa originalidade e estranheza naquele extremo do bairro que, logo abaixo, se abria em pastos e fazendas que margeavam a represa do Jaó. O primeiro era um menestrel anônimo conhecido como “Seu Antônio, que tinha um apelido impronunciável – festa dos meninos e cérbera ira sua -, que vivia num casebre de latas no fundo do quintal onde estava o barracão que habitávamos. Antônio arrastava as pernas, arrimado em um bastão, à causa de feridas crônicas que lhe embaraçavam os movimentos. Era alimentado pela vizinhança e consolava sua vida solitária com um violão e a inseparável garrafa de cachaça. Mantinha na garrafa, onde o líquido era renovado diariamente, uma cobra que ali metera ainda viva. Bebia o licor viperino,
tocava um tropeço violão e engasgava sentidas melodias. Talvez Antônio, o
bêbado e ferido poeta, tenha sido o primeiro rapsodo encontrado por Gabriel
Nascente, então com 9 anos de idade. Outra exceção na tranquilidade da Rua 206 era, no fim daquela via, em pequena praça, um serviço de alto-falantes chamado pomposamente “A Voz da Liberdade”, mantida pelo locutor e divulgador da futura candidatura de Jânio Quadros, que se dizia chamar Manoel Bezerra de Melo. O locutor de pronúncia clara e bem articulada entremeava reclames comerciais, anúncios fúnebres, ofertas musicais com jingles e propagandas do homem da vassoura.

Embora nossas casas estivessem frente a frente, nossa aproximação se
deu pela curiosidade de Gabriel sobre o bardo ermitão que vivia no casebre em nosso quintal, com seu violão, seu canto esganiçado e mirabolantes histórias que provocavam a imaginação da criançada. Depois, pela descoberta de que em nosso quintal havia muitas amoreiras, dessas reles e comuns amoras negras que só interessam aos pássaros e aos meninos. Colhíamos então, os pequenos frutos negros, enrugados, e como em minha casa não havia energia elétrica ou qualquer
aparelho, além de um rádio de pilhas, levávamos a colheita até a casa de D.
Antônia, mãe de Gabriel. Ali suas irmãs Tânia e Vera trituravam as frutinhas
plebéias no liquidificador, transformando-as em doce, violáceo e saboroso
suco, regalo da meninada, num tempo parco de guloseimas e refrigerantes.


No mais, era perambular pelo corte da estrada de ferro, encabritar nas
cercas de um curral próximo, cercado de mangueiras carregadas, perder-se nas brincadeiras de pique, salve cadeia, fincas e piões. Nos fins de semana vinham outros meninos do Bairro Popular, entre eles, não me esqueço da figura ruiva de Divina, uma prima de Gabriel, que se destacava com sua cabeça afogueada e pele de manga rosa. Era curiosa aparição entre os meninos, em sua maioria, morenos, mestiços, negros, de pele ou do barro ferruginoso das ruas sem pavimentação. A menina Divina, assim loura, era então, para nós todos, uma verdadeira e angélica visagem. Essas coisas emergem na memória como contornos de um tempo de rostos, vozes e destinos, tantos já possíveis apenas no silêncio.

Em 1964 fui parar na Escola Técnica Federal de Goiás, para fazer um
curso de Aprendizagem Industrial. O curso se dirigia a estudantes que não
tinham escolaridade regular. Deveríamos freqüentar aí dois anos de aulas,
aprender uma profissão: serralheria, radio técnica, gráfica, fundição,
marcenaria, etc. e, caso o aluno obtivesse aprovação poderia corrigir seus
aleijões curriculares matriculando-se em uma das séries do ginásio industrial.
Aí reencontro, na mesma turma, o Gabriel, que não sei como, foi parar entre a maioria de retardatários, já que era praticamente o caçula da turma, com idade de 14 anos.

Gabriel já era famoso no Bairro Popular, não pela poesia, por enquanto, mas devido a uma série de façanhas que o destacavam entre a súcia que vadiava impunemente entre o antigo aeroporto e o bosque do Botafogo. Primeiro, tinha comprado uma espingarda e saíra a dar tiros pela mata do Botafogo, desafiando a perseguição do primeiro defensor da natureza em Goiânia, o guarda-mata, Dellacorte. Depois, na estela aventureira de Júlio Verne, construíra com o aprendizado que tivera na marcenaria paterna um
submarino de tábuas e compensado. O Náutilus, como o chamara, teve o fim de um Titanic precoce, afundando em um poço do córrego Botafogo, quase encerrando a carreira de inventor e piloto subaquático, Gabriel.

Entre escaladas nos muros do Colégio Santo Agostinho, para ver as alunas em trajes de ginástica e outras estripulias, Gabriel chegara a vencer uma corrida de bicicletas em um dos aniversários de Goiânia, quando tinha apenas 12 anos. Essa performance que o exaltou no imaginário do Bairro popular o animou a fazer uma viagem de Goiânia a Piracanjuba, cavalgando a magrela, passando sede, fome, salvando-se com ajuda de abacaxis verdes que subtraiu de uma roça à beira da estrada. A curiosidade, a perícia em mexer com máquinas e aparelhos, conserto de motos e bicicletas, ainda pela inquietação criadora, logo lhe atraíram o apelido de cientista maluco, um tipo de Professor Pardal da Rua 75. Tenho quase certeza de que foram essas características que o levaram a buscar, ou mesmo ser empurrado para aquele curso de aparelhos elétricos e telecomunicações na antiga ETFG. Também para conforto e tranquilidade da viuvez de D. Antônia, com
sua prole de 9 filhos.

A Escola Técnica Federal de Goiás, embora se dedicasse à formação
profissional, estava contaminada, no bom sentido, pelo humanismo que herdara da vetusta Escola de Aprendizes Artífices de Vila Boa. Ali estavam as lembranças do professor Lisboa, era dirigida por Edmar Fleury, depois por Niso Prego, Hélio Naves. No quadro de professores, Bernardo Élis, Maria Lucy Veiga Teixeira, ( Mestra Fifia), Maria das Dores de Aquino, Coloanan Costa Aguiar, Henning Gustav Ritter, José Lopes Rodrigues, Jorge Félix de Sousa, José Aires Leal, Walfrido Campos Maia, Demartin Bezerra, Gilka Ferreira, Idelfonso Avelar. O filósofo e ex-clerigo Geraldo da Paixão, Maria da cunha. Ali, mesmo os professores das oficinas e servidores da Escola, não perderam o tom familiar dos tempos em que a Escola funcionava como internato para jovens do interior de Goiás. Morocine Pacini, Braz, D. Luíza, Isaura de Castro, Fausto Prego, Nelito, Lauro, o dentista Dr. Quinquin Jardim, Dr. Tuffi Cury, O Mestre Bimbino Baiocchi, e muito mais gente, cujo silêncio dos nomes não significa esquecimento, mas uma forma óssea e imperecível de lembrança. Além dos artistas e intelectuais que estavam vinculados à escola, havia entre alunos, mestres e freqüentadores uma predileção pela cultura, pelas artes. Naqueles dias andava eu à procura de qualquer tijolo ou caixote para declamar Castro Alves. Havia o Eduardo Jordão que já publicara um livro e freqüentava o GEN. Havia o poeta Mário Dias, de quem invejávamos a proximidade com o escritor Oscar Sabino; havia o Alexandre, mulato poeta muito cônscio de sua lira.

Depois, na gráfica da Escola, onde o ofício de gráfico ainda era aprendido
com caixilhos de tipos móveis e uma fumegante linotipo a chumbo,
confeccionavam-se vários livros de autores goianos. Ali consegui o Pássaro de Pedra de Gilberto Mendonça Teles. Pelos corredores passava a figura fina
quase diáfana, flutuando com a Vênus de Botticelli, a poetisa Yêda Shmaltz,
que editava Caminhos de Mim. Também Edir Guerra Malagoni, com seu Tardes do Nada, Primeira Chuva de Bernardo Élis e outros. Teatro, poesia, música, oratória. O espírito convivia com os metais fumegantes das forjas, os
circuitos elétricos, as linhas escaldantes das linotipos, o ruído dos tornos e
das fresas, numa tardia apoteose iluminista.

Em um daqueles dias de 1964 Gabriel teve seu insight definitivo. O toque que
transformou o inquieto cérebro de descobridor, violador de muros e fronteiras, no menestrel maior de nossa época. Em uma das sessões de teatro costumeiras no auditório da escola, onde tomávamos aulas de canto orfeônico, encenou-se uma revista musical, por um grupo de fora de Goiânia. A montagem teatral apresentava esquetes, monólogos, poemas e músicas. O temário se espraiava pelas inquietações daqueles férvidos anos que mergulharam o país na escuridão, onde se gestou a estirpe dos torturadores, dos censores e que ainda teima em continuar na bazófia do populismo, na orgia dos escândalos e na falência pública da honra e da ética.

Num dos monólogos da encenação, protestava-se contra a situação de miséria do Nordeste. A seca, o clientelismo dos coronéis perpetuava a injustiça e obrigava a população ao destino errático da migração para as terras prometidas do sul. O texto dramatizado causou tal impressão no inquieto Gabriel que, um ou dois dias depois, produziu ali mesmo na sala de aula, estou quase certo, seu primeiro poema, a que intitulou “Nordeste”. Logo decorado, o texto virou o abre alas de sua emergência poética, o primo canto de seu talento, o soletrar de seu silabário lírico. O texto era dramático, falava de seca e sofrimento, mas ao interpretá-lo, o poeta agregava um gestual peculiar, trejeitos e esgares que desabrochavam risos na platéia adolescente dos colegas. Alguns professores torceram o nariz para a sintaxe, o ritmo, o versajamento e o descompromisso com as formas tradicionais. Depois desse texto, como um galo que se sente responsável pela aurora, ou um sabiá que se julga o chaveiro da primavera, como uma cigarra que anuncia com sua voz o temporal, o poeta transferiu seu desassossego. Deixou as frinchas dos muros, os aparelhos eletrônicos, as motos e bicicletas e caiu na leitura, na aventura de descoberta com as palavras.

De nada serviram as sessões com os pedagogos, psicólogos e até outros
profissionais das ciências psíquicas. Era caso perdido. Como Ismália perdida
pelo luar, o menino de 14 anos estava perdido pelo encanto das palavras, pelas escapadas imponderáveis das metáforas. Logo surgiu em folhas surrupiadas à aula do Professor Jorge Félix, um calhamaço, que viria a ser os originais de Os Gatos. Publicado em 1966, o pequeno volume de 80 páginas, traz capa do pintor Ossian, vizinho e amigo do poeta, orelha do jornalista Medeiros Neto,
uma apresentação de sua professora primária Terezinha Soares e um prefácio de Jesus Barros Boquady.

Os apresentadores guardam certa tolerância, um crédito à juventude do poeta, prognosticando um futuro possível de aprendizado. Boquady, sábio, diz que os poemas “são criação de mocidade extrema”, ressalta o caráter de testemunho, e prenúncio com alguns “pontos de luz”, a ser validado no futuro. Honra-me com uns versos que recitava pelos corredores, que nunca escrevi: “Poeta atire seus versos ao vento, eles saberão entendê-los.” Além dos desabafos juvenis do D.
Juan de 14 anos, dedicado às suas musas também impúberes, apareciam a paisagem do Bairro Popular, lamentos de orfandade e alguns poemas de preocupação social. Na forma, desaprendia a estética romântico-parnasiana, manejava já o verso livre e algumas tentativas concretistas. Partilhava as influências com os jovens poetas do Grupo de escritores Novos, que frequentamos. Fomos ali algumas vezes, assistimos discussões e estudos, mas ao qual não chegamos a nos filiar formalmente. Colhemos a amizade daquele grupo que teve influência determinante na renovação da linguagem literária em Goiás.

Depois deste start de Os gatos, seguiu-se uma avalanche de versos,
experiências pessoais de viagens e encontros com poetas de Goiás, do Brasil e do Exterior. Já se vão mais de 40 anos e mais de 50 livros. Gabriel possui não só a mais contínua, permanente e prolífera atividade poética de Goiás, como também o mais amplo reconhecimento de críticos e estudiosos sobre sua obra. Sua fortuna crítica está reunida hoje em um volume de mais de mil páginas. São depoimentos de Menotti Del Picchia, Carlos Drummond de Andrade, José Godoy Garcia, Atico Villas Boas da Mota, Batista Custódio, Nelly Alves de Almeida, Ney Teles, Jesus de Aquino Jayme, Brasigóis Felício, Domingos Félix de Souza, Moacyr Félix a Afonso Romano de Santana. De Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis, Fernando Mendes Viana, Antônio Carlos Secchin, Carlos Nejar e muitos outros, para além do rio Meia Ponte, do Paranaíba e do Mar Oceano.

Por sua biografia, pela extensão de sua obra, em verso e prosa, pela
militância na imprensa, Gabriel já merecia estar nesta academia. Há muito se
fez companheiro espiritual dos luminares da poesia goiana como, Leo Lynce,
Helvécio Goulart, Cora Coralina, José Décio, José Godoy Garcia, Joaquim
Machado, Yeda Schmaltz, A.G. Ramos Jubé, entre os encantados, e todos nós que vamos arrastando nossos fardos de palavras.

Olho ao redor, para trás e para diante e não vejo ninguém tão luminosamente
cego pela poesia. Ao perder-se para o mundo de nada, de morte e de coisas que estamos construindo, Gabriel entregou-se, a visões e utopias. Desperta todos os dias mastigando versos, soprando no vento palavras, sons que se incorporam às flautas débeis de seus ossos. Seu pequeno corpo, para sempre resgatado pela infância, é uma concha onde rumoreja os cantos dos pássaros, o arfar de ondas, o olhar alto e indagador de D. Antônia, os devaneios das arremetidas líricas e simbólicas de sua família terrena. Quem os conhece, sabe que em cada um perpassa uma forma cantante de delírio, de doce desapego e poesia. Aos irmãos e aos filhos Thiago e Vanessa, reserva sempre um carinho em dedicatórias de seus livros, onde já começa a florir na calva fronte a ternura de avô.

A ligação maior se faz, porém, com a orfandade, “A imaculada memória de meu pai/que me deixou tão pequeno neste abismo.” Ressuscitado e reconstruído em sua obra, Antônio Estrela Nascente inunda o imaginário do filho que, na orfandade cósmica, adotou a paternidade do mundo. Sempre temeroso da solidão, vai abraçando os amigos, buscando vozes e fazendo ao seu redor uma multidão gritante de versos. Engana-se quem pensa entender Gabriel Nascente por sua figura módica, sua presença trêfega que tenta disfarçar o homem.

É preciso caminhar com ele no silêncio de seus poemas. Olhá-lo como faz De Lourdes no terno e enérgico acolhimento, estendendo-lhe migalhas de alimento para que não se extinga sua frugal carcaça consumida de delírio. Vê-lo, como quem conversa com o Loló, o periquito deficiente físico, que o protege e guarda com a fúria de seus gritos e o gume de suas penas. Engana-se quem busca em sua pequena forma terrena a explicação ou justificativa para seu canto. Seremos sempre surpreendidos por um milagre, destes de verão. A voz que estridula na mata em violinos, celos, corne inglês, quenas, pífanos e trombones não repousa na seca carapaça da cigarra. Nasce dela, mas habita as cordas metálicas do ar, os bojos das árvores, a concha dos trovões e o rasgar dos ventos nas frinchas. O peito do pássaro apenas solfeja um canto em sufocada mudez. A melodia é filha do ar do aconchego dos ventos, do eco das brenhas, do éter e das alturas. Engana-se quem queira descobrir a intensidade do canto na exígua figura do poeta.

Ao prefaciar Pastoral, Moacyr Félix ensina que “O poeta é aquele que sempre avança em direção ao desconhecido que rumoreja sob o que aceitamos como visto, conhecido ou sabido; seu fazer traz sempre a marca do risco, porque o fracasso e o vazio cercam-no de cada lado do fio da navalha em que se equilibra para nomear estrelas ainda não registradas pela aparelhagem da racionalidade humana.” Moacyr acrescenta ainda uma distinção: “o literato, não, o literato anda sempre em caminhos palmilhados, e jamais corre qualquer risco “(...)apenas repete intelectualmente os mapas de um mundo que agora reconhece como seu, de um mundo que o poeta lhe trouxera do que antes era tão somente o silêncio, ou o nada, dentro das bocas fechadas do ser.” “(...) “O poeta é sempre um precursor; o literato não pode deixar de ser epígono.”

Daí ser a poesia de Gabriel Nascente um permanente vagido. Um deslumbrar
constante. Uma respiração ofegante de interjeições. Como se um cego, de
repente, visse o arrebol; o amante contemplasse a face da amada construída
apenas no sonho; a mãe vislumbrasse o filho florindo entre lianas de placenta
e sangue. Descobrir, permear, absorver e dar voz ao que nunca fora dito, de
uma forma até então impronunciada. Gabriel só pode ser reconhecido e captado pelo discurso. As palavras não são somente sua vestidura terrena, seu trânsito levemente carnal, elas foram construindo sua verdade e converteram-se em seu
pão, sua água, sua substância de proteína e ossos.

Vário, Gabriel vai além de sua experiência transitória, além de suas leituras,
dos despojos da genética. É o dono de um discurso aflito, constrói uma
sinfonia permanente de metáforas, manejando um dialeto próprio, enriquecendo com significados personalíssimos e deslizantes os significantes tradicionais da língua. Recepciona o mundo em plenitude, nada rejeitando ou excluindo. Deuses, heróis, poetas e artistas desfilam relembrados em sua glória, ladeados pela expressão prosaica dos homens e das mulheres comuns, do operário, do mendigo, do menino de rua. A tudo confere a mesma dignidade, num abraço universal de afeição. A tudo anima de momentânea e sonora epifania construída com palavras.

Não exclui também as influências literárias e filosóficas que sofreu. Deixa-
as penetrar seu discurso de relâmpagos, como se fosse possível captar o
remoinho das idéias em desfile, a partir dos momentos de um trajeto
vertiginoso. Não contempla quadros estáticos, apreende o fluxo cinético, em
que as imagens surgem e se transformam simultâneas em caleidoscópio paradoxal, reunindo convergências e choques de ideias, de homens e de tempos. A consciência alumbrada é puro espanto diante da vida. Porosamente permeia a história a os homens, captando em esplendorosos insights o flutuante sentido dos fatos, num irracionalismo luminoso, só consentido aos santos, avatares e poetas.

Sua poesia se eleva pela estranheza e abundância lírica. Sua linguagem merece estudo heterodoxo, não a alcançam mais as interpretações inocentes, unívocas. Demanda uma fruição cúmplice, aberta nas múltiplas e possíveis relações, sugeridas por Humberto Ecco e as novas teorias do discurso. Não nos serve à exegese de seu texto o instrumental somente da tradição. Seu texto é o desafio, talvez, ao dealbar de uma nova poética, para além de todas as semânticas que conhecemos. Temo que apenas o olhar já serenado do futuro poderá assegurar e validar o discurso do poeta para além de seu transitório dia na carne. Para nós, contemporâneos seus, resta o embevecimento, o espanto de testemunhar a emergência de sua fala candente, sua intensa energia produtiva, como se desejasse, em seu discurso, construir uma nova Arca de Noé, onde se salvar, onde salvar o mundo e a própria poesia.

Com estas palavras dou as boas vindas ao amigo, ao irmão, ao arcanjo de nossa geração de precipícios. Seja bem vindo Poeta, à casa de Colemar, ao seio dessa estirpe de homens e mulheres que também, um dia, cometeram a ousadia de sonhar. Aqui lhe está reservado um lugar que não foi adquirido como prêmio, mas resultado de uma poupança diária, de verso em verso, de palavra em palavra, de sílaba em sílaba, de letra em letra. Aí esteve o sempre suave e incisivo A.G. Ramos Jubé. Recebo-o como irmão, que aqui chamamos confrade. Hoje Academia Goiana de Letras se enriquece com sua presença e a imortalidade da nossa casa se alarga com o evangelho de seu verbo e a unção de sua palavra.

* Discurso proferido pelo acadêmico Aidenor Aires, em acolhida ao poeta
Gabriel Nascente, por ocasião de sua posse na Cadeira n.º 40 da Academia
goiana de Letras, em 28 de outubro de 2010.

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